domingo, 7 de junho de 2009

447: a hipocrisia no luto oficial



Quando desapareceu no meio de uma noite chuvosa de domingo, o vôo 447 da Air France saía da história para entrar, de forma avassalante, nas páginas de todos os jornais e telas de todos os noticiários.

Justo, justíssimo. Uma catástrofe como essa merece todas as atenções disponíveis. Mas inevitável, visto a proximidade dos eventos e a disparidade de interesse, não compará-la com algo ocorrido uma semana antes.

Longe do glamour da rota Rio-Paris, uma barragem mal conservada rompeu matando nove brasileiros no Piauí. Fosse só isso, já seria tragédia suficiente, mas as chuvas que forçaram a represa já eram responsáveis pela morte de outros 45 brasileiros no norte do país. Fez a conta? Sim, 54 brazucas, um outro vôo 447.

Mas não sabemos quem foram estes cidadãos. Não sabemos suas profissões, que cargos ocupavam em seus empregos, não sabemos a linhagem familiar dessa gente, de quem eram filhos ou bisnetos. Não sabemos se havia algum recém-casado, alguém que estava prestes a tirar férias. Aliás, não sabemos sequer se esse povo tira férias, lua-de-mel, se ganham prêmios pelo bom rendimento em suas profissões.

Não nos interessamos pelas causas e responsáveis, não vimos plantões nos noticiários, nenhuma programação foi alterada para seguir os esforços de buscas pelos sobreviventes e vítimas fatais. Não sabemos sequer se houve esforço algum.

Ou melhor, para não ser injusto, sim houve o deslocamento de uma fragata para apoiar no envio de medicamentos e mantimentos aos ribeirinhos, e vimos também um helicóptero da aeronáutica resgatando os ilhados. Mas nada se compara a frota de navios enviada aos mares de Fernando de Noronha, nem a esquadrilha mobilizada em diversas bases aéreas Brasil afora, em tempo e agilidade pouco usuais.

O certo é que não há excesso em Fernando de Noronha, está correta a ação, mas o episódio nos faz pensar sobre as escolhas e sobre como os recursos são utilizados, pois eles existem, como estamos vendo neste momento.

Também não se viu pelas vítimas nortistas nenhuma comoção nacional, lágrimas em horário nobre, missa rezada por arcebispo. Nenhuma das vítimas recebeu a visita de um vice-presidente da República, de um Ministro, nem sequer de autoridade maior que se tenha notícia. Será que um vereador apareceu por lá? Não sabemos.

Os jornais, irresponsáveis em sua pressa, aprisionados na histeria coletiva em busca do furo de reportagem, da exclusiva, da notícia em primeira mão, e ácidos em suas análises rasteiras, fazem o que parece ser sua especialidade: transformam especulação em fato. “Sarcozy vai ao encontro dos familiares das vítimas, Lula manda o vice”, dizia manchete do O Globo de terça-feira. Para o leitor desatento, poderia parecer pouco caso do governante brasileiro, mas Lula estava já a caminho da posse do presidente de El Salvador, haveria cabimento mudar a agenda naquele momento?

Sem peso político, sem o glamour das aeronaves, sem a atenção internacional, os 54 mortos em consequência das chuvas permanecem enterrados no anonimato. Não se sabe se era um lavrador, uma empregada doméstica, ou quem sabe um criador de cabras.

O que será que há em um acidente aéreo que o deixa tão midiático, tão celebrável? Será o poder aquisitivo daqueles que trafegam neste serviço de transporte? Pois temos uma série de acidentes com embarcações nos rios da Amazônia, que se repetem a cada ano, com grande número de vítimas fatais, e nem por isso observamos essa mobilização, sequer uma ação para que o transporte fique mais seguro. Nenhuma investigação, nenhuma CPI.

O que transforma os acidentes aéreos em algo tão comovente? Ou será a nossa comoção que está sendo formada? Exasperada pelo excesso de informação e presença nos noticiários? Quem deixamos manipular os nossos sentimentos? Quem privilegiamos com nossas lágrimas? Quem influencia na formação da nossa opinião, e como isso vai guiar nossas decisões ao longo da vida, sejam elas de consumo, políticas ou sentimentais?

São mais tantas interrogações a adicionar a um caso já tão cheio de perguntas não respondidas.

KF