segunda-feira, 27 de julho de 2009

UNE, comunistas e um mea culpa


A União Nacional dos Estudantes, que todos esquecemos que existe a não ser quando assistimos a especiais na televisão sobre os anos de chumbo ou quando lembramos da cassação do Fernando Collor, acaba de voltar às páginas dos jornais.

Aproveitando a realização do seu 51º Congresso Nacional, realizado em Brasília entre os dias 15 e 19 deste mês, a UNE mobilizou cerca de 1500 manifestantes para protestar na Esplanada dos Ministérios contra a CPI da Petrobras, entre outros gritos de guerra.

O problema, e o que gerou a atenção da imprensa, foi que a entidade havia recebido um polpudo patrocínio da própria Petrobras para financiar o seu congresso, além de receber, sistematicamente, recursos do governo federal (segundo fontes consultadas, o valor em 2009 está em R$2,5 milhões). E aí pega mal, né não?


Um pouco sobre a UNE

O ano era o de 1993. Eu fazia parte de um grupo de estudantes da PUC do Rio que entendia a universidade também como um local de aprendizado político, afinal de contas estamos inseridos dentro de um processo que influencia e altera nossas vidas, ignorá-lo e não preparar-se seria um gesto de grande vulnerabilidade.

Mas não haviam partidos. O grupo fazia questão de manter as agremiações políticas longe do nosso convívio. Participávamos do processo, mas não éramos ferramentas de manobra de partidos que, sabíamos, disputavam influência (ou mesmo controle) em diversas universidades através dos Diretórios Centrais de Estudantes (DCE) e dos Centros Acadêmicos.

Na faculdade eu estava sempre com uma câmera de vídeo no ombro. E foi por conta desse hábito que um colega de faculdade chegou certo dia com uma idéia que me pareceu, inicialmente, ser uma grande furada. Seu nome era Ralph. Um sujeito complexo. Altamente engajado, muito inteligente, mas extremamente bronco no jeito de ser. Estudante de história, faixa preta de jiu-jítsu, anarquista.

Ralph queria me convencer a embarcar, naquele mesmo dia, em um ônibus que me levaria para a cidade de Goiânia, onde aconteceria o 43º Congresso da UNE. “Mas o que eu vou fazer lá Ralph?”, perguntei sem entender ainda qual era a idéia do nobre amigo. “Você precisa ir lá para ver de perto a nojeira que é a UNE, filmar tudo e mostrar o que aqueles pelegos estão fazendo da UNE, bando de safados!”. Não me lembro bem das palavras da breve conversa, mas Ralph não nutria lá bons sentimentos em relação ao pessoal que comandava a famosa entidade estudantil.

Eu mal conhecia a UNE. Não tinha a menor idéia do que era um pelego. E nem sei exatamente o que me veio à cabeça para tomar a decisão de embarcar nessa viagem. Só sei que horas depois lá estava eu no local marcado de onde sairia um ônibus fretado para levar um grupo de estudantes de diversas universidades, cruzando o país em direção à capital do estado de Goiás.

Chegamos em Goiânia já no início da noite do dia seguinte. Fomos colocados em uma sala de aula de uma escola próxima ao local do evento, transformada agora em dormitório. Larguei o saco de dormir em um canto, pendurei a câmera no ombro e sai para ver o que estava acontecendo. O congresso acontecia no estádio Rio Vermelho, o principal da cidade, e o entorno estava uma grande animação com um vai-vem de estudantes, barraquinhas de alimentos, artesanato e afins.

Liguei a câmera e fui filmando o que aparecia pela frente. Entrei em uma escola onde circulavam muitas pessoas. Subi uma escada, e quando vi estava dentro de uma reunião do grupo dos independentes. Foi aí que comecei a entender o funcionamento da UNE, as manipulações de partidos que tentavam (e conseguiam) dominá-la, e o poder do PCdoB, o partido todo poderoso que mandava na UNE. As palavras de Ralph começavam a fazer sentido.



O Partido Comunista do Brasil

Naquela época a UNE estava em seu quadragésimo presidente (elegeu semana passada o 48º), e o titular era nada mais, nada menos que o príncipe dos caras-pintadas Lindberg Farias (que na PUC chamávamos, pejorativamente, de Lindberg o lindo). Lindberg era filiado ao PCdoB (precedido por Patrícia de Angelis, do mesmo partido), e seria sucedido, naquele mesmo congresso em Goiânia, pelo pernambucano Fernando Gusmão, igualmente dos quadros do PCdoB. E a partir daí o partido não largaria mais o osso.

Uma das críticas do amigo Ralph era de que o PCdoB (e o PT antes dela) havia se apossado da entidade e a estava usando como trampolim de jovens aspirantes à vida política. Desvirtuava-a, assim, de sua verdadeira função: servir aos interesses dos estudantes e contribuir com a melhoria da educação no Brasil. Não seria?

Os temores do jovem anarquista não poderiam estar mais certos. Vejamos: o paraibano Lindberg Farias, depois de uma conturbada carreira no Congresso Nacional, e de algumas trocas de partido (PCdoB, PSTU e o atual PT), é hoje prefeito do município fluminense de Nova Iguaçu. Fernando Gusmão, pernambucano, foi vereador pelo Rio de Janeiro e hoje é deputado estadual. Orlando Silva o sucedeu na gestão 95/97. Orlando, como todos sabem, é hoje o ministro dos esportes do governo Lula. E no mesmo ministério estão outros dois ex-presidentes da entidade. E por aí vamos.

O meu grande espanto, enquanto convivi durante três dias no Congresso da UNE, foi ver que existia uma realidade paralela. Os partidos que eram fortes no cenário nacional, ali não tinham grande força (PMDB ou PSDB, por exemplo – o PT havia dominado a UNE, após a retomada da democracia, até o ano de 1991), e siglas do passado, como o PCdoB e um exótico MR-8, eram poderosos e influentes.

O PCdoB é realmente um caso curioso. Apesar de ser um partido nanico, a agremiação goza de status de grande representatividade também na política nacional. Atualmente o PCdoB tem 42 prefeituras (menos de 1% do total de 5.563 municípios), 12 deputados federais (de um total de 513), 01 senador, 14 deputados estaduais e 603 vereadores (1,2% de um total de 50.367). Para um partido com suposta envergadura histórica, os números são bem tímidos.

Dos deputados federais, dois estiveram na presidência da UNE. Um é o conhecido Aldo Rebelo (gestão 1980/81), presidente da Câmara dos deputados entre 2005 e 2007. A outra é Manuela Dávila (vice-presidente da UNE na gestão de 2001/03).


As carteiras de meia-entrada

Como vimos, a UNE é hoje uma entidade que não tem problemas financeiros. Tendo uma íntima ligação com os políticos que estão no poder, ou tendo sido berço de formação destes, a entidade parece estar muito bem amparada no que diz respeito ao seu acesso a verbas públicas. E não há aqui nenhuma acusação, todo o processo de financiamento, ao que parece, é legal.

No entanto, houve épocas em que a entidade teve que buscar recursos em outras fontes. Foi aí que surgiu o fenômeno das carteiras de estudante, que iria dar muito que falar e acabaria influenciando no bolso de todos nós.

O direito foi uma conquista da própria entidade ainda na década de 1940, mas o benefício seria cassado pelo regime militar e só retornaria nos anos 90.

Com a emissão (leia-se venda) restrita à UNE, durante alguns anos o caixa da entidade foi sustentado pelas carteiras, que davam meia-entrada em cinemas, teatros, shows e eventos esportivos.

A demanda foi gigantesca. A entidade não estava preparada para lidar com uma operação deste porte e tampouco interessada em fiscalizar o processo. Com uma fotocópia sem autenticação de uma declaração de matrícula e uma foto 3X4, qualquer um conseguia uma carteirinha de estudante.

O autor do blog, neste momento, volta a ser protagonista da história para fazer seu mea-culpa. Sim, eu fui um dos milhares de não-estudantes que falsificou um documento para obter uma carteira de estudante. Não foi difícil consegui-la diretamente na sede da própria UNE. Feri assim o artigo 299 do Código Penal ao usar de documento fraudado. Cinco anos de cadeia, seria a pena.

E o que parecia uma vantagem, iria logo-logo se voltar contra mim mesmo, e todos nós. Como sempre.

Não só eu, milhares de pessoas perceberam que a fiscalização da UNE era frouxa e passaram a falsificar documentos para obter o benefício ilegal.

E o que estava ruim, piorou. Em 2001, o governo Fernando Henrique Cardoso quebraria o monopólio da UNE/UBES para a emissão das carteiras. A farra se generalizou. Qualquer birosca emitia uma carteira de estudante. O mercado, sem saber como fiscalizar, ficou de mãos atadas vendo suas bilheterias sangrarem.

O desfalque foi denunciado, mas percebendo que o cenário não iria mudar, o mercado cultural arranjou, ele mesmo, e como sempre faz, uma solução paliativa, uma gambiarra para reduzir os prejuízos: aumentou os preços!


O preço da cara-de-pau

Hoje, os estudantes continuam pagando inteira, e os outros pagando dobrado. A situação está completamente fora de controle. Associações de classe que defendem os interesses de artistas, exibidores e casas de show, dizem que 80% dos ingressos vendidos saem pela metade do preço. Segundo eles, se ao menos essa cota fosse limitada a 30% da lotação, os ingressos poderiam ser reduzidos em 60%. Um desconto e tanto, para todos.

A falsificação de carteiras estudantis cai em um lugar sombrio da ética do brasileiro. Estão lá também os que estacionam na calçada, falam no celular ao dirigir, compram mercadorias falsificadas (ou roubadas) em camelôs, furam fila, trafegam no acostamento, não recolhem as fezes de seu animal doméstico das calçadas etc etc etc. São os pequenos delitos que todos nós nos auto-absolvemos tendo sempre a mão uma desculpa favorável.

A minha, quando fiz uso da carteira falsa, era de que estava duro, mas ao entender a cultura como um bem básico para a minha sobrevivência, me concedia essa pseudo-absolvição. Um dia me dei conta da bobagem que estava fazendo e me desfiz da fraude. Mas ficaram as conseqüências: os preços já haviam disparado.

Réu confesso, só me resta deixar uma sugestão, embora eu saiba que muito provavelmente não serei levado a sério ou em consideração. Uma sugestão simples, na verdade, e nem tão original assim: vamos extinguir a carteira de estudante e garantir a meia-entrada para todos àqueles que tenham até 21 anos incompletos. Não é propaganda de operadora mas é simples assim.

Quanto aos outros delitos? Bem, daí ainda é um longo caminho.


Em tempo: descobri o que é um pelego. O nome vem do vocabulário regional. Pelego seria a pele de carneiro colocada sobre os arreios dos cavaleiros para deixar a sela mais confortável. É usada como metáfora para designar os “agentes disfarçados do governo que tentam agir dentro dos sindicatos ou mesmo o indivíduo servil e bajulador”. Palavras de mestre Houaiss.



KF



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