quarta-feira, 14 de abril de 2010

Caso Isabella: a sentença de cada um

Talvez ainda chegue o dia em que um estudo será feito, teses de mestrado e doutorado, quem sabe filmes, séries, documentários, livros, biografias autorizadas e não-autorizadas que consigam, uma vez afastados pelo tempo, ter a real dimensão do que foi o Caso Isabella.


O fato é abominável, mas real: centenas de crianças são assassinadas a cada ano. Em sua grande maioria, os autores são os próprios pais ou parentes próximos. Nisso o Caso Isabella não seria uma grande novidade. Mas o que fez dele este espetacular acontecimento foi ter conseguido reunir elementos que, se fossem apresentados em um roteiro de cinema, provavelmente seriam reprovados por falta de verossimilhança.

Assassinato de uma criança indefesa, esganada e atirada pela janela do quinto andar de um edifício de classe média, possivelmente por seu próprio pai, incluindo a participação da madrasta. Acrescente-se ciúme, farsa, violência doméstica, gritaria, conivência familiar, investigação científica e tecnológica, rastro de provas, frenesi popular, sede de vingança, linchamento, mistério, ações espetaculares por parte dos advogados de defesa, aparato policial descomunal, guerra de versões. Tudo isso apenas para um caso. Tudo isso vigiado por todos os veículos de comunicação do país, em tempo real.

Minuto a minuto

Por todos os lados, as marcas do tempo estiveram presentes no Caso Isabella. Foram elas que mantiveram a integridade da cena do crime, foram elas que, inabaláveis e inquestionáveis, se sustentaram fiéis a verdade até o fim.

Logo em sua primeira semana, o crime ainda não chamava muita atenção. Era mais uma tragédia na maior cidade da América Latina. Mais um assassinato que em breve seria engolido pela próxima tragédia ou escândalo político-financeiro.

O interesse do colunista pelo caso só seria despertado uma semana depois do crime, menos pelo caso em si e mais pela cobertura do programa Fantástico, da TV Globo. O caso começava a crescer em espaço na imprensa, principalmente com a prisão preventiva do pai e da madrasta.

O assunto era um prato cheio para o programa dominical, cabia perfeitamente em seu título (Fantástico, o show da vida), mas foi a duração da reportagem que tirou o colunista do tédio costumeiro destes fins de noite sem grandes emoções. No ar muito mais do que uma veiculação normal, a reportagem corria por mais de 30 minutos. E isso definitivamente estava fora de todos os padrões. Algo de novo estava começando ali.

Extra! Extra!

É provável que o observador comum, ou mesmo o profissional envolvido no caso, percam a conta no cálculo do volume da cobertura. Mas o colunista, observador sem compromisso com o furo de reportagem, com a entrada ao vivo, com a manchete do dia seguinte, passou a colecionar recortes de jornais do eixo Rio-São Paulo que falassem sobre o caso. Não sabia o colunista que esta função ainda se estenderia por 45 dias, seguidos. E nos dois anos que separam o crime do tribunal, não houve um mês em que uma nota não fosse publicada. O caso nunca esfriou.

Para se ter um parâmetro para esta avaliação, podemos tomar como base a quantidade de capas dadas ao caso pelas principais revistas semanais: 10 no total. Do início ao fim do caso, Época daria três capas, Isto É, mais três, e Veja quatro capas.

Mas o que isso queria dizer?

Para entender, o colunista decidiu comparar a dois grandes episódios recentes. O resultado foi uma surpresa: o volume de capas dedicadas ao Caso Isabella era maior que a cobertura para o Tsunami, e poderia ser considerado também mais expressivo do que a feita para o 11 de Setembro.

Conversando com diversos jornalistas, de diferentes veículos, que exaustivamente cobriam o caso, todos eram da mesma opinião: o caso estava ganhando mais espaço do que deveria.

E porque então ninguém conseguia se livrar dele? Qual seria a locomotiva a puxar este expresso?

O duelo da audiência

Um fato novo corria silenciosamente enquanto a investigação se desenrolava. O Caso Isabella viria a ser a primeira grande cobertura em que a TV Record chegava em igualdade de condições técnicas com a TV Globo. E isso mexeu com o mercado.

Sem poupar recursos, sem compromisso com sua programação oficial, mais solta do que a concorrente, a Record investiu tudo o que pôde na cobertura do caso, obstinada para, pela primeira vez, tentar superar a rival. Isso tudo, é claro, com o mau gosto que a caracteriza.

A TV Globo, percebendo o avanço, não quis pagar pra ver. Reforçou ainda mais a sua cobertura, arregimentou os melhores repórteres e fez mover sua máquina jornalística capaz de chegar na frente e obter as melhores exclusivas. Sendo assim, no domingo seguinte o Fantástico apresentaria, com chamadas entusiasmadas durante toda a programação, a famosa entrevista com o casal Nardoni/Jatobá.

Desta vez a reportagem ficaria no ar ainda por mais tempo: 45 minutos! Sendo que destes, 36 minutos seriam da entrevista do casal, praticamente sem cortes, concedida ao repórter Walmir Salaro, um veteraníssimo com 30 anos de carreira.

A estrutura jornalística montada para acompanhar a evolução do caso é tida por profissionais do ramo como um marco na imprensa brasileira. Nada daquilo havia sido visto antes.

Na reconstituição do crime, torres foram montadas em frente ao prédio onde o crime aconteceu, apartamentos no edifício vizinho foram alugados para o posicionamento de câmeras, caminhões de transmissão ao vivo com suas parabólicas apontadas para o céu engarrafaram a pacata rua Santa Leocádia, endereço do Residencial London.

A guerra de exclusivas estava apenas começando. Bandeirantes e Rede TV! vinham no vácuo, e à reboque toda a imprensa escrita, falada e digitada.

Acusação e defesa se revezavam nos programas televisivos para defenderem suas versões. Até mesmo a apresentadora Luciana Gimenez, do programa Superpop da Rede TV!, foi capaz de dar um furo, sendo a primeira a entrevistar Antonio Nardoni, pai de Alexandre.

Mas nenhum acontecimento, por mais rico que seja em detalhes, tem fôlego para se sustentar tantos dias nas manchetes. Assim, a primeira a tombar foi a qualidade. Jornalistas passaram a ter que se sujeitar, entre outros, a dar informações sobre a roupa que os acusados usavam, o que tinha comido no almoço, ou quem tinha os visitado na prisão. As repetições se multiplicavam ad nauseum, correndo o risco de tornar uma versão em fato, e fato em condenação.

O assunto já estava esgotado, mas ninguém saía do plantão. Em um caso com tantas reviravoltas, com tantos elementos sensacionais, quem piscasse poderia perder o “melhor da festa”. Assim, os jornalistas, e também os espectadores, acabaram algemados ao Caso Isabella. Ninguém sai! Ninguém sai!

O mundo dos advogados

O Caso Isabella teve também outra repercussão: trouxe à tona o dia-a-dia, os jargões, as malícias e manipulações do tabuleiro jurídico jogado pelos advogados.

Antonio Nardoni, advogado tributarista, sabia que o embate não seria fácil. Decidiu contratar logo dois advogados para enfrentar a acusação.

Ricardo Martins e Rogério Neres, mal chegados aos 30 anos, tinham em suas mãos o mais importante caso (ou o que viria a ser) do judiciário brasileiro. Gostavam de usar ternos bem cortados e eram duros no trato com a imprensa. Desde o começo, apareciam de cara amarrada e tom sisudo. Comportamento típico de quem ainda está estabelecendo o seu território e sua autoconfiança.

O cerco se fechava. Antonio Nardoni sabia que os dois garotos, apesar de valentes, não iriam dar conta do recado. Chamou reforços.

Completando um mês do assassinato, e com seu filho novamente em prisão preventiva, Antonio contrata o advogado Marco Pólo Levorin. Mais velho, fala menos agressiva e mais técnica, chega para tentar trazer um pouco mais de credibilidade à defesa.

Mas esse era o Caso Isabella. E seguindo sua trágica afeição pelo absurdo, qual não seria a surpresa quando a trinca de advogados, tempos depois, convoca uma coletiva em um hotel de luxo para apresentar mais dois apoiadores: o médico-legista alagoano George Sanguinetti, famoso pela participação no Caso PC Farias, e a perita criminal aposentada Delma Gama, baiana, uma total desconhecida.

Ambos incendiaram ainda mais o caso com a afirmação de que Isabella não teria sido esganada. Como àquela altura a exumação do cadáver não seria mais possível, o embate se restringia ao campo teórico, amparado apenas por gráficos, tabelas, ilustrações e teorizações. A estratégia parecia ser mais a de tumultuar e distrair a atenção. Sanguinetti bateu duro, Delma parecia mais preocupada em sair bem na foto, tamanha era a quantidade de jóias brilhantes que usava.

Divergência e deserção

Em abril de 2009, o advogado Marco Polo Levorin anunciava o abandono do caso, fruto de "divergências profissionais e processuais", afirmou na época. Levorin nunca se aprofundou em sua justificativa, saindo assim das páginas dos jornais. A imprensa, talvez preocupada apenas com a condenação, deu pouca atenção ao fato e acabou deixando a saída de Levorin no barato. Valeria ter questionado um pouco mais sobre os motivos, mas ficou-se, em um caso tão escrutinizado, sem esta valiosa informação.

Assume o advogado criminalista Roberto Podval. Sua primeira ação é descartar todo o trabalho produzido por Sanguinetti e Delma Gama. Também não houve uma apuração maior sobre esta decisão.

Podval é muito conhecido na capital paulista por seus resultados “positivos”. O advogado encara sua profissão de um modo bastante peculiar, diz em seu site, na página de abertura, que “a globalização e a integração supranacional são fenômenos dos quais resultam relações sociais cada vez mais complexas. O direito penal, neste cenário, é chamado a desempenhar um papel de crescente destaque, como critério de fixação de orientação normativa”.

O colunista não tem a menor idéia do que o advogado queira dizer. Mas deve funcionar já que Podval atuou em defesa do ex-médico Farah Jorge Farah, que matou e esquartejou a amante, recebendo a condenação de 13 anos. Farah continua em liberdade graças a um habeas corpus conseguido por Roberto Podval no Supremo Tribunal Federal. O advogado também defendeu o iraniano Kia Joorabchian, do fundo de investimentos MSI, que fez uma parceria com o clube Corinthians, que terminou em um gigantesco escândalo internacional de lavagem de dinheiro.

Ou seja, Roberto Podval estava à altura do caso. Mas será que Antonio Nardoni estava à altura de Podval?

Quanto custa uma sentença?

Outro assunto pouco aprofundado durante o acompanhamento do caso foi a remuneração de advogados em episódios como esse. Quanto ganham os advogados de defesa em crimes de grande repercussão? Qual o valor agregado em casos onde a absolvição é mais difícil? Há uma tabela? O preço é feito de acordo com os resultados? Ou de acordo com a fama que o caso trará ao advogado?

Especialistas falam em cifras beirando R$1 milhão. Mas ao observarmos o nível de vida dos Nardoni, percebe-se claramente que eles não teriam como arcar com qualquer que fosse o custo. Alexandre e Ana Carolina Jatobá moravam em um bom edifício de classe média. Antônio Nardoni morava em um típico sobrado paulista, modesto.

Como os Nardoni foram capazes de arcar com os custos de todos os advogados, especialistas e assistentes? Se os Nardoni não pagaram, quem pagou por eles? Será possível acreditar que todos os profissionais que atuaram neste caso o fizeram pela publicidade que previam alcançar?

Há um acompanhamento? Saberemos pela declaração de imposto de renda de Podval, Levorin ou Sanguinetti quanto eles receberam pelo caso? Qual a posição da Ordem dos Advogados do Brasil em relação a isso?

Muitas perguntas ainda sem resposta para um caso com tanta repercussão.

A guerra das versões

Um tribunal é basicamente um embate entre o sim e o não. Ou no máximo um “não-foi-bem-assim”. Há também os casos de réus confessos.

No Caso Isabella, como não houve testemunhas, somente os rastros deixados pelo assassino(s), poderiam salvar o tribunal do júri de mandar um inocente para a cadeia.

E é aqui que o inusitado, o imponderado, o inesperado toma conta deste caso. Por mais que luzes ultravioletas fossem capazes de detectar sangue, ou exames de DNA que, com um fio de cabelo, pudesse recontar a história do crime, ou mesmo estudos biométricos que identificassem de quem eram as mãos marcadas no pescoço da vítima, a sola da sandália no colchão. Nada disso seria suficiente para convencer totalmente um jurado. Mesmo com o clamor popular, na hora da decisão, pesa no íntimo de cada um a responsabilidade de poder estar condenando um inocente.

Curiosamente, em um espetáculo com proporções homéricas, foi um pequeno aparelho, do tamanho de um sabonete, que condenou o casal: o GPS colocado por Alexandre Nardoni em seu carro.

Que curioso final para um crime que mobilizou todo o aparato do mais bem equipado instituto de criminalística da América Latina, capaz de mandar fazer no exterior uma boneca do tamanho e peso de Isabella apenas para o dia da reconstituição. Capaz de encontrar sangue lavado com água sanitária, marcas da tela na camisa de Alexandre. E no final, nada convenceu mais os jurados que o tempo. Ele o todo poderoso, ele o pai de todas as coisas, ele o senhor da razão, ele o que tudo governa. O tempo!

Espremidos entre o horário em que o motor do carro foi desligado (23h36m11s) e o horário da primeira chamada ao socorro, feita pelo vizinho do primeiro andar (23h49m59s), exatos 13 minutos e 48 segundos. Seguindo a versão dos acusados, de que todo o crime, ou seja, a esganadura, o corte da tela e o defenestramento da garotinha, teria ocorrido no período em que Alexandre deixou-a em casa e voltou para pegar o resto da família que o aguardava na garagem, sobraria muito pouco tempo para tamanha violência e, acima de tudo, para tamanha decisão e sangue frio na execução.

Porque um ladrão mataria uma garotinha? E mesmo matando, porque a jogaria pela janela, justamente chamando a atenção de todo o prédio e dificultando sua fuga? Porque perderia tempo cortando uma tela? Porque não simplesmente abandoná-la caída no chão e fugir pela escada?

Não vamos aqui pré-julgar o advogado Roberto Podval, nem agredi-lo na porta do tribunal, mas só posso imaginar que ele, ou estava mal-intencionado ao entrar no caso, ou é um profissional de otimismo incalculável e auto-confiança inabalável.

O Caso Isabella sempre foi um caso perdido. Todos, advogados ou não, sabiam disso desde o início.

Epílogo: Mea Culpa, Mea Máxima Culpa

Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá são inocentes? Sim, mataram acidentalmente a menina em um momento de ira cega, mas perderam-se no caminho ao escolher a farsa como defesa. Ali mesmo os dois já tinham se condenado ao martírio silencioso.

Mas uma vez superada a comoção e recobrada a lucidez, podemos chegar a conclusão de que os dois nada mais são do que o resultado da sociedade em que vivemos. Achar que há culpados ou inocentes é se colocar acima do bem e do mal. Cada penitenciária que lotamos nada mais é do que o atestado da falência da nossa própria civilização.

Sim, uma teoria difícil de se aceitar, principalmente ao primeiro contato. O leitor pode se perguntar: mas como fazer para nos protegermos de um novo Caso Isabella?

Bom, a resposta talvez não esteja nas penitenciárias. Elas já estão por aí há muito tempo, e parece que não vêm cumprindo o seu papel, que seria o de, ao colocarmo-nos diante da possibilidade da perda da liberdade, nos amedrontar e frear nosso ímpeto violento e criminoso.

Se os presídios não param de encher, é sinal de que não servem para o que foram criados.

O Caso Isabella talvez tenha sido mais uma boa oportunidade perdida para falarmos sobre o que realmente importa, que é a responsabilidade de cada um na condução do mundo ao estado em que ele se encontra. Se há culpados, somos todos nós.

É sempre bom lembrar, no olho por olho e dente por dente, acabaremos todos cegos e banguelas.


KF