O vice-presidente José Alencar é hoje um político mais conhecido por sua luta contra o câncer do que precisamente por sua atuação no segundo posto mais importante da república.
Tem sido impressionante a sua perseverança em conter o avanço da doença. Uma força de vontade que ele diz tirar de sua fé em Deus.
Entrevistado pelo Jornal Nacional nesta semana, em mais uma de suas saídas do hospital Sírio-Libanês, José Alencar disse, com um semblante tranqüilo, chegando quase a sorrir (se é que não sorriu de fato) que entregava seu destino à Deus, finalizando com a clássica declaração: “seja o que Ele quiser!”.
Impossível não se comover com a relação serena deste homem com a possibilidade iminente do fim da própria vida. Fez-me lembrar da minha avó, hoje com quase 99 anos e lúcida como qualquer um de nós (talvez mais). Certo dia ela me disse, ao ser indagada por que não saía mais, não passeava mais: “Estou satisfeita!”, disse com a mesma tranqüilidade demonstrada por José Alencar.
A frase ficou impressa na minha cabeça e irá me acompanhar até os meus últimos dias. E fiz dela a minha válvula de escape para suportar a sufocante realidade, absoluta e inquestionável: nossa vida um dia chegará ao final.
Talvez sufocante apenas para mim, ou aqueles que pensam como eu, aqueles que simplesmente não acreditam
Durante muito tempo a palavra Ateu soou para mim como um palavrão, uma palavra proscrita, banida, uma palavra exilada nos porões das idéias assustadoras, das coisas que não devíamos falar sobre. A morte é o mais opaco de todos os tabus.
A primeira vez que vi alguém assumindo, pública e naturalmente, que era ateu foi em um programa de entrevistas da MTV: o Gordo a Go-Go. Nele o vocalista da banda punk paulistana Ratos de Porão, João Gordo, recebia sempre dois entrevistados por programa. Nesse dia, sabe-se lá por que, o assunto foi parar em fé e religião. Ao serem questionados se acreditavam em Deus, ambos responderam singelamente que não.
Os entrevistados eram o cantor Caetano Veloso e o ator Danton Mello.
A fé e a religião
Há uma frase recorrente na boca de muitos brasileiros: “não tenho religião, mas acredito em Deus”. Entender o que está por trás deste pensamento é uma tarefa que não cabe no espaço da coluna, mas podemos começar a tentar analisar a linha de raciocínio.
Antigamente, ressalvando-se os judeus e muçulmanos, todos os brasileiros nasciam católicos. Ninguém perguntava se queríamos ou não ser batizados, simplesmente era assim. Com o tempo isso mudou. Fomos descobrindo que a igreja católica não era tão bacana assim, fomos nos dando conta que era na verdade a igreja da repressão e das penitências. E, acima de tudo, uma igreja hipócrita.
As igrejas pentecostais, hoje chamadas apenas de evangélicas, perceberam a oportunidade, sacaram o desejo de muitas pessoas em praticar a sua fé sem culpa ou grãos de milho sob os joelhos. Valorizando o ser humano, reconhecendo sua sexualidade e individualidade, e tirando o dinheiro do jugo do pecado (afinal eles também queriam – e iriam – lucrar!), as igrejas evangélicas pipocaram país afora.
Acho curioso o espanto de algumas pessoas quando falo que sou ateu. “Mas como assim, não acredita em nada, nadinha?”. Algumas são capazes até de duvidar: “Ah, você deve acreditar em alguma coisa, isso é só tipo”. Outros ainda dizem: “Ah, deve haver alguma coisa depois, não é possível que seja só isso!”.
Como assim só isso?
A questão é que nunca nos foi apresentada outra opção. Aceitamos sem resistência, sem questionamento, sem pensar. Acreditamos em Deus e seguimos assim, talvez porque sabemos, no fundo, que pensar o contrário é, simplesmente, aterrorizante.
Desconstruindo Deus
Escrevemos Deus com letra maiúscula. Logo Deus é um nome próprio. Se é nome próprio é porque pertence a uma pessoa. Então Deus é uma pessoa (imagem e semelhança). Além de pessoa, Deus é homem, masculino, singular. Porque não uma mulher? Não é dela a fonte da vida?
Mas os que primeiro tiveram a idéia, acharam que seria um homem, então Deus homem se fez. E assim temos hoje um bando de igrejas machistas, ou você consegue encontrar uma mulher em posição de liderança em alguma religião? Curioso, não?
Sempre falamos no que vai acontecer logo após a nossa morte. Subimos aos céus para nos encontrarmos com Deus. Ok, mas e depois? O que acontece depois?!! Vamos ficar ali, convivendo com outras almas? Vamos encontrar todos os nossos parentes que foram antes de nós? Vamos encontrar com todo mundo?! De Montezuma a Cleópatra? Vamos nos encontrar com bilhões e bilhões de almas que já passaram por este planeta? É muita gente!
Os que morrem criança, permanecem criança? Os com síndrome de down, autistas, especiais, continuarão assim ou a alma livre se cura dos males do corpo? E qual será nossa relação com a eternidade, nossas almas sentirão o passar do tempo, veremos a luz do dia e a escuridão das noites? Já paramos para pensar o quão cansativa e angustiante deve ser a eternidade? Isso sem falar no tédio...
Será que não nos damos conta de que essa história simplesmente não fecha?
Vamos lá, voltando à criação. Deus então criou tudo, tudinho, todo o Universoooooooooooooooo, mas escolheu primeiro povoar a Terra com organismos unicelulares invertebrados, depois vieram os dinossauros, e o resto já sabemos. Também tivemos vários antes de nós, talvez como um ensaio. Homo Habilis, Erectus, Neanderthalensis, Sapiens. Coisa de 200 mil anos atrás. Só pra começar...
E aí eu sou obrigado a novamente perguntar: mas e eles, tinham alma?
Pois essa coisa de ter ou não ter é uma questão muito da conveniência do momento. Afinal, quando foi preciso a igreja determinou que negros e índios não tinham alma e que por isso podiam ser escravizados, já que desalmados nada mais seriam do que bestas, como um burrico ou um boi (depois teve de pedir perdão, mas isso já é outra história).
Não tenho orgulho de me declarar ateu. Na verdade não é algo para se acanhar ou se vangloriar. O ateu simplesmente se reconhece assim, ao não encontrar dentro de si o desejo de ter um deus, e ao não encontrar fora nada que o faça pensar diferente. E mais ainda, ao não querer ter um deus, resignando-se com a verdade em seu estado puro e aplicado, que é a validade do corpo humano.
A lei que rege o Universo é uma só e vem em três verbos: nascer, desenvolver, extinguir.
Ser ateu nada mais é do que reconhecer, humildemente, esse prazo que nos foi dado a viver pela mãe natureza.
O escritor Raduan Nassar tem um escrito interessante em seu livro Lavoura Arcaica. Ele fala assim sobre o tempo:
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor.
Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento.
Sem medida que o conheça, o tempo é, contudo,
o nosso bem de maior grandeza.
Não tem começo, não tem fim.
Rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas,
e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas;
rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo,
aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra o seu curso,
brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira.
O equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo,
e quem souber com acerto a quantidade de vagar,
ou a de espera, que se deve pôr nas coisas,
não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.
Pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.
O ateu não quer convencer ninguém. Essa coluna não quer convencer ninguém. O ateu não é um cético cínico, a debochar dos outros. Em sua grande maioria são amantes da vida e entendem que não estão aqui de passagem. Que não estão aqui em algum teste que o aprove para uma vida melhor em outro lugar. Apenas entendem que precisam viver a vida em sua plenitude para poder, quem sabe, chegar ao final com o grato sentimento de dever cumprido.
Carpe Diem
KF
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