quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A história de Cadinho

No filme Sociedade dos Poetas Mortos, um então pouco conhecido ator chamado Robin Williams eternizou uma expressão que seria grafada em prefácios de livros, tatuadas em braços e ombros, impressa em camisetas e usada e abusada na publicidade: Carpe Diem.

Uma tradução direta do latim? Colha o dia (os filósofos gregos sempre com sua interessante visão de mundo).

Seu significado ampliado? Aproveitar a vida ao máximo, sugar o seu sumo, impregnar-se de sua essência.

A história que trago hoje é de uma pessoa que, independente de doutrinas, campanhas publicitárias ou crenças religiosas, elevou à quintessência o mote de Williams.

A biografia de Ricardo começa em um dia qualquer, em um momento qualquer da vida que ele até então levava.

Ricardo é um carioca de bem com a vida. Uma vida que sempre foi boa, e que ele, generosamente, retribuía sendo bom com tudo o que o cercava: família e amigos. Aos 22 anos, chegava ao final de sua formação acadêmica. Seguindo os passos do pai, estava se formando em Administração de Empresas. Filho de Márcio e Mara, irmão de Patrícia.

Foi de Mara a decisão de mudar de médico. Um hábito salutar ao longo de nossas vidas, tanto para o paciente quanto para o profissional. Pela nova escolha, é fácil perceber que Mara não costuma negociar com a qualidade dos produtos e serviços que consome. Levou a família para um check-up com um dos melhores profissionais atuantes no país, o médico João Pantoja, diretor do hospital Copa D’Or (Pantoja foi um dos médicos envolvidos na tratamento do cantor Herbert Vianna).

Ao receber os novos clientes, Pantoja decidiu, curiosamente, incluir um procedimento pouco usual na rotina de um check up para alguém tão jovem, um raio-x de tórax e abdômen.

Com o resultado dos exames em mãos, João deve ter sentido um frio descendo pela espinha. As manchas que via no sistema digestivo de um jovem de 22 anos só poderiam ser uma coisa. E essa doença tinha um nome. O nome mais aterrorizante que uma pessoa pode se deparar. Um nome tão forte que ainda hoje habita na esfera do indizível, dos tabus.

Pantoja não mediu as palavras. O tratamento só estaria disponível nos EUA.

Ao perguntar quando isso deveria ser feito, Márcio ouviu a resposta que não gostaria de ouvir: “Amanhã!”.

Os recursos e decisões que Márcio moveria a partir daquele dia, iriam alterar definitivamente o seu modo de ser, o seu trabalho, a sua vida.

Em 48 horas Ricardo dava entrada no hospital Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, na cidade de Nova Iorque. Um dos melhores, se não o melhor centro de tratamento de câncer no mundo. E é da sala de espera deste hospital que a história de Ricardo, chamado de Cadinho pelos mais próximos, iria começar a cruzar com a do colunista.

Sem avisar aos pais ou a ninguém, Cadinho escreveu uma carta aos amigos. Enviada pela internet, começava assim:

Fala Galera, desculpe a demora, mas durante muito tempo fiquei escolhendo as palavras certas para escrever para vocês. Como vocês sabem, as coisas estão difíceis por aqui. Difíceis de não estarem correspondendo as minhas expectativas. Como sabem, por três vezes tive notícias desagradáveis, e por três vezes entrei em choque. Primeiro foi a descoberta no Brasil de um tumor. Segundo, o diagnóstico, assim que cheguei em NY, de tumor maligno(...). E por fim o diagnóstico final e verdadeiro, como vocês sabem, estou com câncer e o mesmo já se espalhou”.

Apesar da dura realidade, curiosamente o texto transmitia uma serenidade, uma postura madura demais perante a vida para um moleque recém saído da adolescência. E a coluna desta semana é justamente sobre isso, sobre algo que vai muito além do que quer que se possa expressar em palavras.

Cadinho “entrou” em Carpe Diem, ou talvez sempre tenha estado. A diferença é que, a partir daquele momento, ele passou a emanar e contagiar a todos os que o cercavam com esta energia.


A palavra que não queremos ouvir

Para entender melhor do assunto, visto que a informação praticamente não circula fora do eixo paciente-médico, o colunista resolveu pesquisar um pouco mais sobre a doença. Uma doença que de tão aterrorizante, fica jogada ao preconceito e à desinformação.

E qual não foi minha surpresa ao, finalmente, entender o que é o tal Câncer e, permitam-me, o quanto de poesia e ensinamentos podemos aprender com esta doença. Pois sim, doenças nada mais são do que ensinamentos à humanidade, mostrando os caminhos certos ou errados que estamos trilhando, e nos lembrando sempre que devemos ao Tempo, uma dose de humildade, e à Vida, uma dose de respeito.

Somos um amontoado de células. Mas precisamente 1 trilhão delas. Isso mesmo, 1.000.000.000.000 de células que formam dos nossos ossos aos nossos fios de cabelo. E elas não param de se multiplicar do momento da fecundação até o último suspiro dos pulmões.

Cada célula já nasce com seu prazo de validade. Com sua missão a cumprir. Algumas podem durar apenas algumas horas, outras ficarão conosco por muitos anos, e outras ainda, como os neurônios, nos acompanharão até o fim da vida.

E isso tem um nome: apoptose. O termo vem do grego antigo (olha o latim aí de novo gente!) e faz referência a queda das folhas no outono. Então, o que se tem é a idéia de renovação constante. É como se fizéssemos uma troca de pele como as cobras, só que em nosso caso, uma troca invisível.

Mas acontece que, por uma série de motivos, vez por outra aparece uma célula que se nega a cumprir o seu papel. A célula, então, passa a crescer descontroladamente, se transforma em um alien celular, buscando sua nutrição em outras células saudáveis. Não só isso, a célula cancerosa passa a ter a capacidade de se locomover, invadindo outros tecidos, podendo se alojar em praticamente qualquer parte do corpo, ou mesmo em múltiplas localizações.

A célula cancerosa nada mais é do que uma célula que se rebelou ao seu curso natural, uma célula que se negou a morrer. O curioso é que, ao tomar esta decisão, não sabe a célula que estará levando junto seu hospedeiro, irá matar justamente aquilo que ajudou a criar.

Então o câncer é isso. Talvez devamos ter com esta doença o mesmo cuidado que tivemos com a Lepra. De tão estigmatizada, conferia aquele que a possuía não só o drama da descaracterização, mas também o escárnio e o alijamento da sociedade, além da morte iminente. Com a lepra tivemos que mudar o seu nome para que, livres do preconceito, pudéssemos avançar no diagnóstico e na cura. Hoje a lepra é conhecida apenas como Hanseníase, em homenagem ao seu descobridor, o norueguês Gerhard Hansen.


Informação é cura

Ao saber da gravidade e do raríssimo tipo de câncer que estava alojado no estômago de seu filho, Márcio tomou uma decisão radical (entendendo radical como aquilo que tem raízes): interrompeu todas as atividades profissionais que mantinha e se lançou em uma busca incansável por conhecimento.

Debruçado sobre a tela do computador, Márcio vasculhava o planeta em busca de informação, novas práticas, novas pesquisas, drogas experimentais e qualquer traço de conhecimento que pudesse ser aplicado ao caso de Cadinho.

E não seria tarefa fácil. Ricardo havia sido diagnosticado com um tumor. Mais que isso, um tumor maligno. Mais que isso ainda, um tumor maligno metastático, ou seja, já espalhado em diversos órgãos. E ainda tinha mais. Ricardo havia sido diagnosticado com um câncer raríssimo e agressivo, que de tão raro, sequer tinha um nome ou uma tradução para o português. Cadinho carregava em seu corpo um DSRCT, ou Desmoplastic Small Round Cell Tumor.

Para se ter uma idéia da baixíssima incidência deste tipo de câncer, são registrados por ano apenas 50 casos em todo o mundo. Segundo o INCA (Instituto Nacional de Câncer), para o ano de 2010 são esperados, de acordo com as estatísticas e prognósticos, cerca de 50 mil novos casos de câncer de mama, outros 27 mil casos de câncer no pulmão e ainda 21 mil de câncer de estômago, apenas citando algumas variações, apenas citando o Brasil.

Cadinho tinha uma doença que incidia em apenas 50 pessoas por ano, no mundo!

Márcio soube então, economista que era e conhecedor das regras do mercado, que não haveria interesse da indústria farmacêutica, nem dos laboratórios, na busca de drogas específicas para este câncer. Pois não vá o leitor pensar que todos os cânceres são tratados da mesma forma. Uma sessão de quimioterapia nada mais é do que a administração de um coquetel de drogas para aquele paciente com aquele tipo de câncer, naquele estágio específico. Ainda mais, o câncer percebe que estão tentando destruí-lo, e com isso muta-se para ficar resistente aquele tipo de quimioterapia.

Então, além do pouco que sabemos sobre o câncer, o que sabemos é isso: o combate a um inimigo camaleônico, um inimigo silencioso, um inimigo se escondendo dentro de nós mesmos, um inimigo que somos nós a alimentar e fortalecer.

Para tornar a situação ainda mais dramática, o resultado do primeiro raio-x chegou no semestre de sua formatura no curso de administração na PUC. A reação de Ricardo não pareceu a de um jovem com apenas 22 anos, mas sim de um ancião, de um sábio, de um mestre. Pediu a conivência da família no silêncio que manteria até que o resultado definitivo viesse. Não queria estragar a festa.

E seria assim pelos anos seguintes. Não no silêncio, mas em um pacto não verbal entre a família, onde cada um assumiu um papel na administração da doença. Mara era responsável pela medicação e por manter o alto astral, sempre aparecendo a cada manhã com novos projetos e novas idéias. A irmã Patrícia cumpria um papel semelhante. Márcio se debruçou na busca por caminhos que levassem a cura, e à Cadinho sobrou o papel de viver, curtir a existência, Carpe Diem.


Enquanto isso...

Para os médicos do celebrado Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, Cadinho tinha pouco tempo de vida. Seis meses depois da primeira quimioterapia e de uma intervenção cirúrgica para retirada dos tumores visíveis, os exames mostravam o retorno quase completo da doença. A família solicita então uma nova intervenção cirúrgica. O Sloan-Kettering se nega a operar.

Com a frieza com que são conhecidos, os médicos norte-americanos, ao se depararem com o DSRCT, solenemente decretaram que Ricardo recebesse alta e retornasse ao Brasil. Nas linhas minúsculas, o subtexto estava claro: volte para morrer entre os seus.

Nos anos que se seguiram, Márcio focou sua vida em uma intensa pesquisa. Mais do que isso, sentindo-se desamparados pela indústria da saúde, a família decidiu assumir o tratamento, e mais ainda, num gesto ousadíssimo, decidiu assumir a pesquisa e a administração de novas drogas e terapias, coordenando grupos de pesquisa e interagindo com pesquisadores e laboratórios que pesquisavam novos protocolos. Naturalmente com o consentimento de Ricardo e o acompanhamento e parceria de médicos em vários países.

Márcio me contou que a primeira coisa que aprendeu foi que as estatísticas não funcionam no câncer. E que o primeiro round seria contra o tempo. Eles tinham que ganhar tempo.

Na medida em que ia conhecendo mais profundamente a doença, e se posicionando com conhecimento de causa, Márcio passou a ser respeitado e ouvido pela comunidade médica - uma classe já costumeiramente presunçosa e corporativista - chegando ao ponto de influenciar em decisões para novos protocolos quimioterápicos.

Como o Sloan-Kettering não quis mais tratar o câncer de cadinho, não querendo assumir, eventualmente, o óbito daquele paciente, a família decidiu buscar em outro super-hospital a continuidade do tratamento. Mudaram-se para o The Mount Sinai Medical Center, também em Nova Iorque. Iniciariam ali uma batalha campal contra a doença que atravessaria oito cirurgias, 12 protocolos diferentes de quimioterapia, cada um com uma média de seis sessões, duas radioterapias, um transplante de célula-tronco e uma imunoterapia. Os médicos que acompanharam o caso eram unânimes em relatar que nunca tinham visto uma resistência tão grande aliada à tamanha alegria de viver. Ficavam surpresos como Ricardo encarava a sua realidade com naturalidade.

Cadinho seguia a sua vida. Namorava, montava sua empresa. Como o pai, trabalhou no mercado financeiro. Foi um dos fundadores da Casa do Saber, um centro de cursos livres hoje bastante conhecido no Rio de Janeiro e São Paulo. Freqüentava o carnaval de Salvador, saía em Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Ou seja, seguia curtindo a vida adoidado. Era esse o seu papel.

A ponte-aérea Rio-Nova Iorque era intensa. Na volta, Márcio sempre trazia novas drogas, algumas recém lançadas ou mesmo em testes. Márcio passou a receber em seu apartamento pacientes de câncer e seus familiares. Discutiam os tratamentos, se aconselhavam, se apoiavam. Com o conhecimento cada vez mais apurado, Márcio não só debatia com médicos sobre os caminhos a seguir nas pesquisas, como filtrava informações conflitantes e recomendava alguns tipos de tratamento a esse grupo.

Márcio não tinha tempo a perder. Ele sabia que, para chegar ao mercado, uma nova droga consumiria 20 milhões de dólares e 10 anos em pesquisas e testes antes de ser liberada. Até mesmo em ervas medicinais ele foi buscar uma chance de ganhar tempo. Testou a cúrcuma, ou açafrão-da-terra, que hoje é testada em combinação ao medicamento Tamoxifeno.


Oncologistas: porta-vozes do mal?

Conversei com o oncologista Carlos José Coelho de Andrade, Ex-chefe de oncologia clínica do INCA - Instituto Nacional do Câncer, sobre esta difícil tarefa, a de não só ser o porta-voz de uma doença potencialmente letal, como também de ser aquele que acompanhará o paciente em seus momentos finais.

Carlos José me contou que hoje já existe uma corrente de pensamento entre alguns profissionais que praticam o que eles chamam de “Breaking Bad News”, ou a prática de quebrar uma notícia ruim em partes. “Dar uma notícia ruim é um momento importante neste processo. Dar uma notícia ruim envolve passos, saber o que a pessoa já sabe, oferecer a informação no tempo da pessoa, estar preparado para lidar com a reação do paciente, manifestar compaixão no olhar, no toque, minimizando assim o sofrimento do paciente e também do profissional que muitas vezes, para tentar manter a frieza necessária, se coloca distante no processo”, diz ele. O oncologista destaca ainda que a síndrome de burn out (um alto nível de estresse vivido por profissionais que atuam sob pressão) é alta entre profissionais da saúde neste segmento.

Carlos José tem 16 anos de profissão. Pode-se imaginar quantos pacientes já acompanhou. Segundo ele, a compreensão do que é a Vida faz a diferença na hora de se deparar com seu fim. Assim como a formação religiosa também influi neste momento.

Momento, aliás, que é visto por alguns estudiosos como um período especial da vida. São vários os casos de pessoas que afloram o seu melhor neste instante. Deparadas com a finitude, com o não ter mais tempo a perder, valores são reposicionados, crenças são reavaliadas, o ser se ilumina. “A vida pode ficar mais interessante depois que você percebe como as coisas são maravilhosas”, reflete Carlos José.

O ex-chefe de oncologia clínica do INCA aproveita o contato com o colunista para fazer um alerta: o câncer está crescendo e, para 2030, é tido pelas instituições internacionais de pesquisa como a principal causa isolada de mortes. Sendo que 70% dos casos são e serão relacionados ao tabaco, a má alimentação e ao sedentarismo.

Mas Carlos fez questão de lembrar que o diagnóstico do câncer não é uma sentença de morte. Quanto mais cedo diagnosticado, melhores as chances de cura. “O problema é o medo do desconhecido, isso afasta muita gente dos consultórios. Já tive pacientes que, ao saberem da possibilidade de estarem com câncer, nunca mais voltaram para a próxima consulta. Isso é um erro gravíssimo!”, diz.

Carlos José é um médico que foge aos padrões rígidos da classe, afinal ele vem estudando a medicina ayurveda, praticada há milhares de anos pelos hindus na Índia e com um entendimento mais amplo da medicina, incluindo ai um acompanhamento também da alma da pessoa, de sua essência, de sua subjetividade. Carlos entendeu que “a morte não pode ser considerada uma derrota. A morte é uma etapa da vida como o nascer. Devemos sempre continuar vivendo, já que não sabemos quando vai terminar nossa vida. O futuro é apenas uma possibilidade. A única coisa que dispomos é o agora”.


A Passagem

Durante seis anos e dois meses, Cadinho seguiu desafiando as estatísticas. Sempre sorrindo, nunca falava sobre a doença. Tinha uma alegria de viver, era conselheiro dos amigos. Certa vez chegou a comentar com seu médico nos EUA que estava muito preocupado com os pais, pois eles não estavam mais vivendo suas vidas.

A cada três meses era feito um exame. Nos seis anos nunca houve uma melhora. Ricardo não se alterava. Não queria que os outros sofressem. Nunca reclamou da vida, nunca praguejou: “Por que eu?!”.

Curiosamente, Ricardo parece ter passado incólume às cinco etapas do processo de morte definidos pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross, autora da famosa publicação “On Death and Dying” (Sobre a Morte e o Processo de Morrer) como sendo a Negação, a Raiva, a Negociação, a Depressão e a Aceitação de que a morte é inevitável.

Márcio sentiu, no final, que Cadinho cumpriu o seu papel de mostrar uma força de viver admirável e uma dedicação aos amigos inabalável. Ao longo dos seis anos, a família viveu a doença que, apesar de maltratá-los no coração, uniu-a “em um momento de amor intenso”, como definiu Márcio.

Ricardo foi tratado no The Mount Sinai por um dos mais respeitados oncologistas em atividade, Dr. James F. Holland. Ao saber da morte, Holland mandou a seguinte mensagem à família:

“Prezados, a sua perda é uma que eu compartilho. Existe um pilar na oncologia que é o de não se deixar envolver emocionalmente com o paciente pois, com a possibilidade da perda, em repetidas ocasiões, pode-se gerar um estresse crônico no médico, incapacitando-o para futuros atendimentos. Eu quebrei este ensinamento com o Ricardo. Ele foi um jovem especial e eu investi muita emoção e trabalho na busca de sua cura. Ele foi um paciente exemplar pois entendeu tudo o que estava em jogo. No entanto, nunca reclamou nem se sentiu injustiçado. Ele enfrentou com grande coragem e alegria os desafios que se apresentaram, me fazendo acreditar novamente que não é hora de me aposentar aos 84 anos de idade. Há muito o que se fazer e Ricardo me inspirou a continuar. Sinto-me honrado em tê-lo conhecido”.

Cadinho foi cremado em um domingo de sol no dia 13 de setembro deste ano. Compareceram a cerimônia mais de 300 amigos. Curiosamente, e sem combinação prévia, todos vieram de branco. “Foi uma celebração da vida”, diz Márcio.

Não houve qualquer serviço religioso. Com um microfone e uma caixa de som, os amigos se sucediam ao contar histórias alegres que viveram com ele. “A gente queria que a mensagem dele seguisse adiante: curte a vida, curte cada momento!”, me disse Mara. O ato de sétimo dia foi um pagode com direito a samba e caipirinha, no que ficou conhecido como o Pagode do Cadinho, marcado agora para acontecer anualmente, só para amigos.

Ao contrário do que pareceu até agora, o colunista nunca conheceu Ricardo. E nossas vidas só se cruzaram por conta do anúncio que Márcio, Mara e Patrícia colocaram no obituário do jornal O Globo naquele domingo 13 de setembro. Não sou de ler com atenção esta seção. Passo os olhos apenas para, nem sei bem por que, saber quem foi dessa para melhor, como dizemos no popular. Mas o texto inusitado me chamou a atenção. Primeiro pelo volume e estilo do texto, segundo pela primeira frase, muito incomum onde estava: “Fala galera” (o texto na íntegra está no final da coluna). O colunista saberia depois que não só ele, mas dezenas de pessoas procurariam a família emocionados com o texto, que seria também debatido em programas de rádio ao longo daquela semana e comentado a esmo pela cidade.

Aliás, esta foi minha última pergunta para ele, porque haviam decidido publicar aquele anúncio e dar a entrevista? Márcio me disse que era tão somente para que o recado que Ricardo deixou seguisse adiante.

O colunista entendeu que seria uma boa história para contar, e, mais ainda, uma excelente história para fechar 2009. Nos finais de ano, essa época em que tendemos a parar e avaliar o que já passou. Um período propício para uma reflexão mais profunda sobre a nossa existência e sobre a forma como vimos colhendo o dia nosso de cada ano.

Carpe Diem

KF



RICARDO FAINZILIBER

(CADINHO)

29-01-1981 12-09-2009

Fala galera,

Desculpe a demora, mas durante muito tempo fiquei escolhendo as palavras certas para escrever para vocês, e acabei não escrevendo nada. Como vocês sabem, as coisas estão difíceis por aqui. Difíceis no sentido de não estarem correspondendo as minhas expectativas. Como sabem, por três vezes tive notícias desagradáveis e por três vezes entrei em choque. Primeiro a descoberta no Brasil de um tumor. Segundo, o diagnóstico, assim que cheguei em NY, de tumor maligno, mas não apresentando metástase. E por fim o diagnóstico final e verdadeiro, como você todos sabem, estou com câncer e o mesmo já se espalhou (essa foi a pior das notícias e a que mais demorei a me recuperar). Para os que não sabem, meu caso é um pouco complicado por se tratar de um tumor raro e quase desconhecido. Bom agora que já sabem os fatos científicos, esqueçam tudo.

Estou ótimo e muito feliz. Minha família tem sido fundamental neste momento, assim como o apoio de meus amigos. Obrigado a todos. Ainda estou me recuperando da cirurgia e em breve estarei começando a quimioterapia. Optei por fazê-la aqui por razões médicas. Mas dentro de alguns meses estarei voltando ao Brasil para dar um abraço em vocês.

Como vocês sabem, quimioterapia é um pouco complicado. Náuseas, enjôos, perda de cabelo, falta de apetite... mas no mais é tranquilíssimo. Hehehe. Logo agora que acabei de cortar meu cabelo. Droga!

Estou brincando. Óbvio que não me agradam esses efeitos colaterais, mas também não serão eles que me farão perder toda confiança, força e energia que consegui atingir.

Me surpreendo a cada dia. Faço questão de ao levantar da cama olhar para a janela e me fortificar observando a natureza e a vida. Estou muito feliz também com tanta energia e pensamentos positivos que tenho recebido. Desde missas, orações, grupos de meditação, a simplesmente pensamentos carinhosos. Sem dúvida tudo isso esta chegando até mim e está me ajudando nesta luta. Eu sou mais eu, aliás, sou muito mais eu....

Nada me abalará assim tão fácil, não se preocupem com isso. E quando tudo acabar, em breve, estarei de volta compartilhando todos os momentos que passei, todos os medos, todas as felicidades, todos os sentimentos que sem dúvida terão me engrandecido. Afinal, tudo na vida acontece por uma razão. Como não sei qual foi a dessa, estarei tirando lições a cada dia.

Espero que vocês já tenham percebido a mais clara das lições. A vida é muito frágil. Não complique, busque a felicidade de forma simples, custe o que custar. Outra coisa fundamental que aprendi: tudo na vida é relativo. Quando você se encontrar estressado, com problemas, analise bem a situação e reflita: será realmente este problema digno de tanta tristeza e preocupação? Talvez não. Tenho compromisso médico, mais ainda quero ver se consigo escrever mais um pouco do que tenho passado e sentido, mas isso fica pra mais tarde. Afinal, o dia está apenas começado.

Amo vocês!!!

Ricardo Fainziliber