quarta-feira, 23 de junho de 2010

Morumbi: gol contra ou pênalti?

Enquanto assistíamos tranquilamente à Copa do Mundo da África do Sul, uma briga de cachorro-grande corria solta nos bastidores da próxima sede do campeonato mundial. A rinha seria vencida, pelo menos por enquanto, pelo bulldog Ricardo Teixeira, o presidente da CBF.

Explicar por que o estádio do Morumbi foi vetado para a Copa do Mundo de 2014 é expor as entranhas de um jogo de poder e dinheiro em um volume que não encontra comparação em qualquer outro ramo de atividade.

Enquanto nos divertimos em bolões, soprando cornetas e ficando roucos de tanto gritar, muito dinheiro está sendo negociado fora dos gramados. A Copa do Mundo, mais do que um campeonato de futebol, é um grande business, mas um mercado fechado para os poucos que pertencem ao círculo de interesses da FIFA.

O colunista já explorou um pouco o assunto (grandes eventos esportivos) no texto “Rio 2016: eu não quero!”, publicado em setembro de 2009. Mas vale voltar ao tema.

O cenário desta vez é o bairro mais nobre do Brasil, o Morumbi. É lá que fica o estádio do mais rico, vitorioso e bem preparado time de futebol brasileiro, o São Paulo Futebol Clube.

Quando o Brasil “ganhou” o direito de sediar a Copa do Mundo, existiam 18 cidades que disputavam o direito de ser uma das sedes. Apenas12 cidades seriam selecionadas pela FIFA, que leva em consideração não só o estádio e seu projeto de construção e/ou reforma, mas a infra-estrutura hoteleira da cidade, sistema de transporte urbano, aeroportos, segurança, opções de lazer etc.

No que se refere aos estádios, as “exigências” da FIFA nada mais são do que condições que já deveriam existir para qualquer campeonato comum: cadeiras individuais numeradas, banheiros limpos e em número suficiente, corredores de acesso largos, e tribuna de imprensa bem equipada, ou seja, o básico do básico. Também é bom ter um amplo estacionamento e um hospital por perto. Chamar isso de “exigência” é no mínimo curioso.

Para sediar a abertura, um estádio deve ter, seguindo ainda os critérios da FIFA, 60 mil assentos, e para o encerramento, 80 mil. Até aí, tudo ia bem para o estádio do Morumbi que detinha moralmente a prerrogativa da abertura da Copa (os estádios de abertura e encerramento serão definidos ano que vem). Mas qual não foi a surpresa de, em meio a Copa do Mundo, uma notícia como essa ser divulgada. Como poderia ter acontecido tamanha catástrofe de planejamento?

Salve Tricolor Paulista, tu és forte, tu és grande...

Há tempos que o projeto paulista vinha sendo posto em cheque. A FIFA desconfiava que o clube paulista não seria capaz de arcar com as obras de remodelagem do estádio que, apesar de pertencer ao clube mais rico do país, ainda precisaria fazer reformas para se adequar aos padrões de Copa do Mundo. O problema não era rede hoteleira, os transportes públicos, o apoio da população ou a infra-estrutura da maior cidade da América do Sul, mas sim a altura do gramado.

Não da grama, evidentemente. A FIFA exigia que a altura da linha do gramado (assim como foi feito no Maracanã para os Jogos Panamericanos) fosse rebaixada em 1 metro para melhorar a visibilidade do jogo. Além disso, a FIFA identificou uma série de pontos cegos nas arquibancadas, fato que a diretoria do clube reconhecia e pretendia solucionar. Além da costumeira maquiagem do estádio, colocação de teto, entre outros. Com isso, os valores da reforma do Morumbi chegaram à casa dos 600 milhões de reais. Ou seja, o custo de um novo estádio.

Como é um estádio privado, teria que ser o próprio clube a custear a reforma. E convenhamos, mesmo sendo o clube dos bacanas de São Paulo, seria difícil encontrar alguma empresa com capital de giro suficiente para patrocinar tamanha movimentação de recursos.

Sendo assim, segundo alegou a FIFA, o São Paulo Futebol Clube não conseguiu, dentro das datas estabelecidas, oferecer as devidas garantias de que conseguiria os recursos para a reforma do estádio a tempo da Copa 2014. Em nota oficial à imprensa, a CBF afirmou:

“Não foram entregues ao Comitê Organizador Local da Copa do Mundo 2014 (COL), por parte do Comitê da Cidade de São Paulo, as garantias financeiras referentes ao projeto do Estádio do Morumbi aprovado pelo COL/FIFA no dia 14 de maio de 2010. O Comitê da Cidade de São Paulo enviou ao COL um sexto projeto, que não será examinado. Sendo assim, fica excluído do projeto da Copa do Mundo de 2014 o Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi. A FIFA e o COL estão à disposição da cidade de São Paulo para futuras discussões."

E essa foi a versão amplamente repercutida pela grande imprensa.


Enquanto isso no Brasil...

Dos onze estádios que restaram, sete serão reformados (RS, PR, RJ, MG, DF, CE, MT) e quatro serão erguidos do pó (BA, PE, AM e RN). Todos, estritamente TODOS estão com seus prazos criticamente estourados, e muitos ainda estão sem as tais garantias financeiras.

Segundo o planejamento exigido pela FIFA, todas as obras já deveriam estar em andamento desde o dia 1 de março deste ano. Não precisa ser um leitor assíduo de jornais para saber que nenhum, absolutamente nenhum estádio sequer ouviu o barulho de uma britadeira ou abriu um saco de cimento.

Para não dizer nenhum, o estado do Rio, proprietário do Maracanã, realizou uma obra de maquiagem justamente no dia em que o prazo expirou, colocando uma máquina para fazer sondagens para a construção das novas rampas. Pura enganação para jornalista ver e repercutir. Além disso, no último dia 21 de junho, enquanto Portugal metia sete gols na Coréia do Norte, o estádio da Fonte Nova, em Salvador, recebia as britadeiras da Odebrecht para o início de sua demolição (recordar é viver: o estádio da Fonte Nova foi aquele em que o piso rachou e 7 pessoas morreram ao despencarem de uma altura de 15 metros).

Dos 11 estádios, apenas dois são privados como o Morumbi, a Arena da Baixada, de propriedade do Clube Atlético Paranaense (também seriamente ameaçado de sair do páreo), e o Beira-Rio gaúcho, do Sport Club Internacional. Todos os demais pertencem aos seus devidos estados. Maracanã e Mineirão, pelo porte dos estádios e vaidade de seus governadores, serão integralmente reformados com dinheiro público, ou seja, aquele meu e seu. Nos outros serão firmadas parcerias público-privadas (PPP), esse novidade criada nos últimos anos e que ainda não disse realmente ao que veio, além de ter regras e contrapartidas muito nebulosas.

Há casos em que o edital sequer foi lançado, como em Brasília, há casos de contestação na justiça, como em Fortaleza, onde os concorrentes da licitação vêm disputando nos tribunais o direito de participar da licitação. A PPP vêm recebendo contestação também do Ministério Público Estadual e do Tribunal de Contas cearenses. E há casos como o plano megalômano de Pernambuco, que quer construir uma Cidade da Copa, não só com um estádio, mas com prédios residenciais, shoppings, hotéis em um projeto orçado em nada mais nada menos que R$1,6 bilhões.

O governo de Pernambuco também opta pela PPP e acha que, apenas cedendo o terreno vai encontrar empresas dispostas a arcar com tamanho investimento.

Os problemas são generalizados e uma revista de grande circulação já chegou a publicar matéria onde aventaria a possibilidade da FIFA ter um plano B, caso o Brasil entrasse em falência total. Nesse caso, a Copa iria para a Inglaterra. A notícia foi contestada pela CBF e pela FIFA.

Somados todos os custos apresentados pelas 12 cidades sedes, o valor apenas para a infra-estrutura dos estádios está hoje em R$6.222.000.000,00. Mas sabemos que, como em qualquer obra deste porte, o valor final vai ser muito maior (na experiência sul-africana, o valor inicialmente orçado dobrou até a entrega dos estádios – o Soccer City, orçado em R$487 milhões, foi finalizado em R$846 milhões).

Fúria de Titãs

Com quase todas as cidades fora dos prazos oferecidos pela FIFA, por que apenas São Paulo teria sofrido tamanha punição?

O atual presidente do São Paulo Futebol Clube é um cidadão chamado Juvenal Juvêncio. O cidadão Juvêncio e o cidadão Ricardo CBF Teixeira não podem ser convidados para a mesma mesa. E isso não é de agora.

Além da CBF, existe no Brasil uma associação voltada para o futebol que foi criada justamente para tentar sair das garras da CBF: o Clube dos Treze (que na verdade reúne os 20 maiores clubes do país). Na última eleição, em abril deste ano, Teixeira tentou colocar no comando do C13 o amigo Kleber Leite, conhecido ex-cartola do Flamengo e dono da empresa Klefer, que negocia placas publicitárias em jogos amistosos da seleção brasileira e no campeonato carioca.

Não emplacou. Venceu o atual presidente, outro conhecido cartola: Fábio Koff, reeleito e no cargo há 14 anos.

E quem era o principal aliado de Koff? Juvenal Juvêncio!

A briga de bastidores foi grande, reportagem do site UOL informa que Ricardo Teixeira se envolveu diretamente na eleição, pressionando os clubes. A entidade foi acusada, inclusive, de exigir do Botafogo o apoio a seu candidato para liberar um empréstimo de R$ 8 milhões. Não há provas, apenas o voto do Botafogo em Kleber Leite (o Flamengo votou em Koff).

E o que significa ser presidente do Clube dos 13? Administrar o contrato de direitos de imagem para a televisão, que hoje gira em torno de R$1,6 bilhão por ano.

E tem ainda outro ingrediente, a disputa entre as TVs Globo e Record. A Globo apoiava Kleber Leite/Ricardo Teixeira, buscando não perder os contratos que já têm. Agora, com a reeleição de Koff e o crescimento da Record, que venceu as licitações para a transmissão dos Jogos Panamericanos de 2011 e das Olimpíadas de 2012, a Globo sente-se ameaçada em sua hegemonia visto que Koff questiona os contratos firmados entre a CBF e a TV Globo.

Por outro lado, Juvêncio é acusado de tentar chantagear o Comitê Organizador da Copa do Mundo - 2014 (presidido por Teixeira) usando-se do seu prestígio e do vulto do São Paulo. Uma fonte que conversou com o colunista, em off, afirma que Juvêncio tentou pegar recursos do BNDES - que tem uma linha de crédito de até R$400 milhões aberta a todas as cidades-sede para obras de reforma e construção dos estádios - diretamente com o Banco, e não com uma instituição financeira, como é de praxe. O que acontece é que o BNDES, para se proteger de eventuais calotes, entrega o valor a um banco que, em seguida, empresta ao solicitante. É claro que com isso paga-se uma taxa aos bancos, que no economês é chamado de spread, ou taxa de risco.

Juvêncio achava que não deveria pagar, além dos juros, também o spread bancário. Entrou de sola...

Além disso, Juvenal Juvêncio colocou o pau na mesa e disse que só faria as reformas se o Morumbi fosse oficializado como palco da abertura, coisa que só vai acontecer mais para frente. Maracanã e Morumbi são apenas cogitados como sedes, mas o martelo ainda não está batido. O Maracanã é intocável, todos sabem disso, principalmente pelo resultado de 1950 (queremos revanche!), mas Juvêncio tinha a consciência, visto suas disputas com Ricardo Teixeira, que o Morumbi poderia ficar sem a abertura e sediar apenas as oitavas ou quartas-de-final.

E a África?

Ricardo Teixeira foi estratégico ao derrubar o Morumbi no meio da Copa Africana. Conseguiu com isso abafar as vuvuzelas da discórdia que soariam sem parar no noticiário. Assim, o imbróglio rendeu apenas um dia nas páginas dos jornais.

Aliás, reside aqui outra curiosidade sobre esta Copa. Chamá-la de Africana no stricto senso, ou seja, chamá-la de Negra, que é o que está embutido no eufemismo, é fato que merece uma atenção.

Primeiro porque uniformiza o continente, como se todos fossem negros, tribais, zulus. E a África está longe dessa pasteurização. Mesmo no que chamamos de África Subsahariana, não há essa similaridade de culturas e etnias. É como chamar gaúchos e uruguaios de um mesmo povo. São apenas parecidos. Existem 53 países no continente africano (na América, de norte a sul, são 35, e na Europa, 50), dezenas de línguas e tonalidades diferentes.

E justo a África do Sul, o menos africano de todos os países africanos, ou o nobre leitor que acompanha a Copa do Mundo acha mesmo a Cidade do Cabo com cara de cidade africana? E mesmo assim, o que seria uma cidade com cara de africana, malocas? O preconceito é escorregadio e pegajoso, é preciso ter muito cuidado com as palavras e as idéias. O colunista incluído...

A pergunta sempre houve: será que os africanos serão capazes? E quando a Copa apresentou sérios problemas de gestão e prazos, muitos ainda se perguntaram: não terá sido um erro entregar a Copa aos africanos?

Mas o certo é que no final das contas ficaremos sem saber quem realmente realizou a Copa do Mundo de 2010, já que a FIFA permite pouca ingerência em seus negócios.

Apenas para o leitor entender, quem organiza o evento não é país sede e sim a FIFA, que lista os padrões para os estádios que pretende alugar. A FIFA não é a ONU, mas uma empresa privada que realiza um evento voltado ao lucro. Uma Copa do Mundo não tem nada a ver com uma Olimpíada. Assim como a CBF, que não tem nenhuma ligação com o Ministério dos Esportes brasileiro. A CBF não tem o objetivo de promover o esporte, a integração dos povos, essa coisa toda que vemos em paralelo. Como qualquer empresa, sua finalidade é gerar receita.


Quem ganha?

Mas por que então países competem para sediar um evento tão oneroso onde os lucros ficarão para a FIFA?

A idéia que nos vendem é que a Copa deixará um legado para a infra-estrutura das cidades e um legado de visibilidade para o turismo. O colunista tem dificuldade de engolir essa história, principalmente depois do que vimos no fiasco dos Jogos Panamericanos de 2007. E sinceramente, alguém acredita que o Rio de Janeiro precisa da Copa do Mundo para amplificar o seu turismo? Será que o Rio precisa das páginas dos esportes, ou precisa apenas sair das páginas policiais? Não me parece que isso se consiga com uma Copa do Mundo.

E Manaus, que tem como mote de visitação à Floresta Amazônica. Alguém acredita que a Amazônia ainda precisa de alguma publicidade a mais? A Copa não mudará em nada o panorama turístico do país. (uma curiosidade sobre o legado de uma Copa do Mundo: o Japão recebeu a Copa de 2002. A mãe do colunista se encontra neste momento em Tókio. A pobre coitada acordou às 3 e meia da manhã para tentar assistir ao jogo Brasil e Costa do Marfim. Nenhuma TV transmitia os jogos. Nenhuma! A cidadã brasileira teve que se contentar com as informações transmitidas na barra de informações do canal CNN).

A Copa do Mundo será um mau negócio para o Brasil assim como foi para a África do Sul. O tema é proscrito, mas é só pesquisar para ver que existem muitas vozes dissonantes no país de Mandela, que vêem a Copa consumir importantes recursos que poderiam ter sido utilizados em saúde, educação, saneamento.

Nem mesmo para divulgar a cultura africana a Copa do Mundo serviu. Pois na abertura do evento, quando a música africana, sendo o continente também o berço de toda sonoridade, poderia ter sido a estrela da noite, quem vimos sob os principais holofotes? O purpurinado Black Eyed Peas e a rebolante Shakira, ambos tirados das paradas de sucesso norte-americanas. A FIFA não está preocupada com a valorização da cultura local do país que recebe o evento, sua preocupação é apenas com os índices de audiência de seu evento, majoritariamente feito para a transmissão via satélite.

Não sei o que sobrará para a África do Sul, mas sei o que está vindo por aí em 2014, e a conta sairá ainda mais cara. Os pagantes da vez somos nós.


Diante disso tudo, parece que quem ganhou foram os paulistas!



KF


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