quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Alemão: dê dois mas mantenha o respeito

 Por incrível que pareça, o assunto já está envelhecido, embora por alguns dias tenha sido como o evento do século. Isso faz a coluna desta semana soar de certa forma atrasada, mas nem tanto.

O colunista preferiu mesmo dar tempo ao tempo para que a poeira baixasse e os fatos começassem a sair dos bueiros e galerias pluviais. Um tempo necessário para que a histeria da imprensa também permitisse uma melhor avaliação, já que a “invasão” do complexo do Alemão deixou muito mais dúvidas do que esclarecimentos.

A expectativa era de um confronto cinematográfico. Uma coisa tipo fim dos tempos. Até que tivemos uns tiros pra apoiar as manchetes, mas o tal banho-de-sangue tanto falado (e quase ansiado por alguns), felizmente não aconteceu. O que parece é que a pontaria de ambos os lados precisa de uma calibrada, ou talvez tenha sido apenas uma encenação para justificar o aparato mobilizado. Quem sabe o velho jogo de cena entre polícia e traficantes? Ou teria sido uma estratégia de não-confronto? Ou de um confronto calculado? Ou de um confronto combinado?


Sob o fantasma de Tim Lopes
Falando em cinematográfico, outro fato que chamou a atenção foi a transmissão ao vivo feita pela TV Globo através de celulares, em uma cobertura sem precedentes. As imagens ficariam marcadas também pela adoção de uma postura de guerra para os jornalistas, o uso permanente de coletes à prova de bala, que no caso da Globo eram personalizados na cor da emissora e com a logomarca bordada no bolso. O Iraque era ali.

A TV Globo tinha especial interesse no resultado do confronto já que foi na região que o jornalista Tim Lopes havia sido executado. O “especial interesse” talvez venha motivado também por um mea-culpa. Afinal, encarando a vida como ela é, Tim foi morto em serviço. E nesse caso, a Globo seria co-responsável na morte de Lopes.

Outro fato curioso do episódio foi a manchete dos jornais na manhã de domingo: “Traficantes não aceitam ultimato e Alemão será invadido hoje!”. Fica claro, com a desistência do efeito surpresa, que não havia, assim como em outras instalações de UPPs, a intenção do confronto. Só resta saber se foi pelo motivo mais nobre, justamente o de evitar o tal banho-de-sangue, ou por um motivo obscuro, seja lá qual for.

A Fuga consentida
E as curiosidades não pararam de aparecer: chefes do tráfico sendo transportados em carros da polícia para outras cidades, indícios de cobrança de propinas para facilitação de fugas, e a mais espetacular de todas, a mudança do traçado das redes de esgotamento construídas pelas obras do PAC na região, que endereçariam para rotas viáveis de escape.

A possibilidade de este fato ser verdade traz em si uma surpresa: o nível de estratégia e engenhosidade do Comando Vermelho. A informação sobre a mudança de projeto das galerias de esgoto pode não ser de toda verídica, mas um fato inquestionável é o diminuto número de prisões efetuadas na operação. Assim como de apreensões de armas, isto, claro, se colocarmos em perspectiva a região como “epicentro do crime” e área “totalmente fora de controle”, palavras do secretário de segurança José Mariano Beltrame.

E nem falamos ainda na facilidade com que o Complexo foi “tomado”. O colunista tem dificuldade de acreditar que o crédito fica apenas com os blindados das Forças Armadas.

Alguma parte desta história ainda não foi contada.

A guerra contra quem?
O título que a operação acabou ganhando foi o de “Guerra Contra o Tráfico”. Este cabeçalho merece um pouco mais de atenção. Primeiro precisa ser corrigido. O certo seria Guerra Contra o Comando Vermelho, visto que os morros atacados foram exclusivamente os desta facção.

E porque disso? Bom, não podemos perder a perspectiva do suposto elemento motivador do episódio: os arrastões e ônibus incendiados, que ganharam em vulto e proporção logo após as eleições.

Segundo o serviço de informações da secretaria de segurança, as ações eram coordenadas pelo Comando Vermelho como retaliação à instalação de UPPs. Daí surgem mais dúvidas: as UPPs estão hoje em diversas comunidades que eram chefiadas por diferentes facções, incluindo aí as milícias. Então porque apenas o Comando Vermelho estava orquestrando as ações? Faltou explicar esse ponto. Mas o mais importante desta informação é o fato de que as ordens estavam partindo de dentro dos presídios, o que em si já é uma senhora aberração e um atestado de falência múltipla.

Outro serviço de informação que muito funcionou durante este período foi o bom e velho boca-a-boca. Quase todas as prisões e apreensões de drogas e armas foram feitas a partir de denúncias de moradores diretamente aos policiais, à imprensa ou através do serviço Disque-Denúncia.

Algo que sempre intrigou o colunista foi a pouca participação dos moradores através do DD. Um serviço que oferece o anonimato e a ausência de questionamentos sobre a origem da informação. Parecia uma boa idéia, mas o telefone ainda não tinha dito ao que veio.

Mas foi uma longa conversa com um morador da favela Santa Marta, no bairro de Botafogo, uma das primeiras a receber as Unidades de Polícia Pacificadora, que começou a esclarecer a questão.

Segundo o morador, ao fazerem incursões na favela a partir de denúncias feitas ao serviço telefônico, eram os próprios policiais, ou parte deles, que informavam aos traficantes que estavam fazendo aquela operação via Disque-Denúncia. O fato de não saberem quem foi não impedia que a comunidade fosse punida como um todo. Simples assim. Isso, claro, antes da instalação da UPP.

A mudança de comportamento no complexo do Alemão, mesmo sem a certeza de que os policiais iriam permanecer no local, ou mesmo da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificador, surpreendeu muita gente e talvez seja o grande diferencial deste episódio. A retomada da região não pela força das balas, sempre efêmera, mas pela força da cidadania talvez ainda seja uma visão prematura e romântica demais para ser levada a sério, mas a mudança de comportamento, certamente inspirada pelo exemplo que vem de outras comunidades com UPPs, teve um peso considerável. Sem a participação dos moradores, o resultado da operação policial teria sido ainda mais magro.

E falando em magreza, os números, no entanto, parecem robustos: 35 toneladas de maconha apreendidas, 250 kg de cocaína, 25 quilos de crack, quase 2 mil frascos de lança-perfume (lança-perfume?!?!), armas e bilhões de motocicletas..., no que foi anunciado, ad nauseum, como uma grande derrota do tráfico, prejuízo à facção, quebra da coluna vertebral do crime organizado, entre outros adjetivos triunfantes.

Mesmo assim, curiosamente, o mercado continua estável. Passadas quase duas semanas da invasão, não houve variação alguma de preço da maconha ou cocaína. Como o mercado de drogas é informal, qualquer alteração no fornecimento já é sentida na mesma hora. A informação é importante para separar o que é fato do que é pirotecnia, ou mero golpe publicitário.

Descriminalizando corações e mentes
Do que estamos falando afinal? De acabar com a venda de drogas ou de acabar com a guerra entre os que disputam os pontos de venda? Incluindo aí a polícia que corrompe e se deixa corromper.

A definição da intenção é  fundamental para se seguir adiante.

Se queremos acabar com as drogas, temos que buscar apoio em experiências de sucesso em outros países, assim como foi com as UPPs, idéia importada/adaptada/remodelada da Colômbia.

No entanto, prezado leitor, não perca seu tempo. Uma experiência bem sucedida de extinção do consumo de drogas não será encontrada. Não há avanços registrados no combate ao consumo de entorpecentes em nenhum país, em nenhuma experiência, em nenhum formato. Ao contrário, o consumo se amplia e novos produtos surgem no mercado, agora sob a engenharia dos sintéticos.

Milhões são gastos nesta empreitada. A insistência no mesmo caminho, na mesma solução do confronto, mesmo sem resultados, é de se levantar suspeitas.

Em um mercado desregulado, sem controle de qualidade, pagamento de impostos ou taxas alfandegárias, é de se supor que esta atividade comercial seja uma das mais, se não a mais lucrativa do planeta. E quantos estarão dispostos a matar e morrer por uma fatia deste mercado? E afinal, quem verdadeiramente lucra com a venda de entorpecentes no mundo? Elias Maluco, Zeu, Beira-Mar, Marcola?

A venda de entorpecentes talvez seja uma das poucas atividades capitalistas que entendeu, desde o início, que o sucesso do negócio estaria na distribuição dos lucros, na distribuição da renda. Do fubica no morro ao desembargador, presidente, policial, juiz ou advogado, todos lucram, e muito. Ninguém quer parar essa máquina de dinheiro. E, convenhamos, a máquina já nem tem mais o botão de desligar.

Legalize Já
Logo quando assumiu, em seu primeiro mandato, Sérgio Cabral foi bem claro sobre seu apoio a descriminalização das drogas. É verdade que já estava eleito e tampouco a decisão sobre o tema estava sob sua alçada, sendo coisa do Congresso Nacional e da Presidência da República. Mas a simples menção já era uma novidade interessante.

Quatro anos depois, é possível que por trás desta nova política de ocupação esteja este espírito descriminalizante, de não combater a droga, mas sim de combater os excessos dos traficantes e acabar com a guerra entre as facções.

Pedindo licença ao Alemão para filosofar um pouco, neste caso apenas o idioma, a história da humanidade mostra que através dos tempos fizemos uso de substâncias que alterassem nossa consciência, que elevassem nossos espíritos, ampliassem a percepção, que nos relaxassem ou simplesmente fizessem rir um pouco. Seu consumo está ligado a nossa história, as nossas descobertas e, permitam-me a ousadia, a nossa evolução.

É curioso, e lamentável, que no mundo moderno, justamente o mais bem informado, tenhamos escolhido o tabaco e o álcool como opções de drogas autorizadas. Um paradoxo tão óbvio e tão clichê que o colunista tem quase vergonha de argumentar. Assim como é lamentável que deleguemos às drogas a origem dos excessos. O excesso está no homem, é ele a fonte, está nele a distorção. Não é a maconha, a cocaína, o cigarro ou o álcool que provocam o dolo. O dolo está em nós.

E mais lamentável ainda é colocar a responsabilidade da solução deste imbróglio no colo de quem consome. A tentativa pode ser interpretada como um gesto desesperado e covarde de solucionar o problema, ou, em último caso, de lavar as mãos.

Noves fora, não há mais nada que justifique ou sustente mais a permanência de qualquer substância entorpecente no código penal, talvez, no máximo, no código florestal.



KF


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