quarta-feira, 1 de julho de 2009

O dia em que a favela dançou

Era o verão de 1996, mais precisamente fevereiro. Um domingo. Eu havia acabado de chegar de uma viagem de férias. Morava no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Da janela do apartamento podia-se ver em panorâmica 180º de prédios e morros, um deles o Dona Marta, onde fica a favela Santa Marta.


Era um domingo quente de verão como outro qualquer. Mas não ficaria assim por muito tempo. Ao olhar para o Dona Marta, notei que alguma coisa estava diferente. O morro era distante o suficiente para não permitir ver a movimentação de qualquer pessoa na comunidade, mas naquele dia havia alguma coisa estranha, na verdade era um colorido que chamava a atenção.


Busquei um binóculo e mirei em direção àquele pontilhado de cores. Quando consegui focar, vi que eram na verdade centenas de pessoas sentadas nas lajes e nas janelas, todas olhando na mesma direção.


Foi quando caiu a ficha: era o dia da gravação do clipe de Michael Jackson.


Não se falava em outra coisa no país. O assunto tinha ficado ainda mais em evidência graças a um desastrado senhor que decidiu que iria proibir Michael Jackson de filmar na favela. Mas isso eu conto em breve.


Na câmera fotográfica recém-chegada da viagem ainda restava um filme a terminar. Coloquei-a na mochila, montei na bicicleta e parti em direção à entrada da favela. Cheguei em 10 minutos e fui logo subindo, sem dificuldade. A movimentação de jornalistas, policiais e curiosos era intensa, fácil descobrir onde estava o epicentro da confusão.


Ao entrar na pequena quadra da escola de samba São Clemente, no pé do morro, onde estavam concentrados todos os jornalistas - o morro estava fechado para a imprensa - dei de cara com uma Glória Maria furiosa e iniciando uma rebelião que iria arrastar todos os que estavam ali.


A veterana jornalista da TV Globo bradava que não agüentava mais ficar ali esperando e que aquilo era uma falta de respeito. Ou ela iria entrar ou iria embora, falava para quem quisesse ouvir.


Passou a mão no microfone de Globo, enrolou o cabo, colocou embaixo do braço e partiu. Atrás dela fomos todos. Jornalista em plantão é assim, quando um se movimenta, todos se movimentam. Quem perde a foto perde também o emprego. Foi um tal de cinegrafista correr pra pegar a câmera, fotógrafo agarrar a bolsa de equipamentos, e todos foram seguindo Glória Maria em direção a viela de entrada.


A turba de jornalistas foi se afunilando até não poder mais andar. Um grupo de jovens que vestiam um colete bicolor (cinza e rosa), identificando-os como sendo da produção, impedia a nossa passagem. Mas todos ali sabiam que eles representavam outra pessoa. Tinham sido colocados no posto pelo dono do morro. E o patrão naquela época era um sujeito que iria ficar muito famoso não só por conta de Michael Jackson, mas também por seu relacionamento com o cineasta João Moreira Salles. Sua trajetória de vida seria posteriormente contada pelo jornalista Caco Barcellos no livro Abusado. Estamos falando de Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP. Além do livro, Marcinho é hoje um verbete na respeitada enciclopédia eletrônica Wikipédia.


A notícia de que a produção do cineasta Spike Lee, responsável pela direção do clipe They dont care about us, teria negociado com Marcinho VP para a filmagem na favela, e conseqüente segurança da equipe, enfureceu as autoridades do asfalto. Na época era governador um senhor chamado Marcello Alencar, que tinha como secretário de Indústria Comércio e Turismo um outro senhor, muito rico, chamado Ronaldo Cezar Coelho, que além de irmão de um famoso árbitro era também dono do banco Multiplic.


Ronaldo, ainda pouco conhecido, precisava de uma plataforma para se lançar candidato à prefeitura do Rio, que aconteceria no ano seguinte. Assim, escolheu Michael Jackson como cabo eleitoral. Coelho alegou que o clipe iria denegrir a imagem da cidade ao mostrar apenas a favela. Não sabia o secretário, ou fingia não saber, que são justamente os governos incompetentes de prefeitos, deputados, vereadores e governadores que denigrem a imagem do Rio de Janeiro.


Ronaldo Cezar Coelho conseguiu até a adesão de figurões como Pelé, que questionou: “Porque não filmam no Pão-de-Açúcar?”. Pelé, a quem normalmente não devemos levar em conta quando está comentando assuntos fora de sua área de conhecimento (Pelé é capaz de ser garoto propaganda-enganosa de aparelhos que fazem o seu abdômen ficar sarado com choques elétricos), poderia ter ficado fora dessa furada.


Ronaldo conseguiu o que queria: estardalhaço, além de uma ação pública movida provavelmente por um advogado aliado. Por incrível que pareça, as filmagens chegaram a ser proibidas por um juiz de primeira instância, mas a decisão foi descredenciada por um desembargador sensato. O caso chegou até ao Itamaraty, que recomendou ao governo do estado que evitasse um incidente diplomático.



E lá estava eu, imprensado em um beco da favela Santa Marta com toda a imprensa nacional e internacional. Como meu objetivo ali era mais me divertir do que qualquer outra coisa, achei melhor ficar no final da fila, até porque, aquilo parecia que não iria progredir tão cedo.


Foi então que o inesperado se apresentou. Um morador da favela passou e disse, para quem quisesse ouvir, que sabia outro caminho para chegar até o set de filmagem. Todos estavam tão preocupados em furar o bloqueio dos meninos de Marcinho que ninguém prestou atenção no que ele disse, apenas eu.


Com o coração a mil, achando que a qualquer momento fosse esbarrar com alguém armado que me expulsaria dali, fui zanzando até chegar a um ponto em que não podia mais passar. E nem precisava, eu acabara de me dar conta de que estava dentro do set de filmagem e que era o único jornalista a presenciar o fato.


E o fato apareceu bem na minha frente. Assim que cheguei ao local o chão da favela tremeu com a música-guia de They dont care about us, tocada a todo vapor em caixas de som espalhadas por toda favela. Estupefato, vi Michael Jackson passar dançando e cantando a menos de um metro. A viela não recebia muita luz natural e eu não podia nem sonhar em usar um flash, por isso eu já sabia que ou as fotos ficariam tremidas ou subexpostas. Apertei o clique quantas vezes foram possíveis, em uma indecisão se olhava o que estava acontecendo ou se me preocupava em tarefas básicas como foco, diafragma etc






Sentia-me no maior furo jornalístico da história e já me imaginava milionário com a venda das imagens exclusivas.


O que matou Michael? Ou Quem? (ou a história se repete!)


O resultado da autópsia não interessa mais. Michael Jackson foi outra vítima de um sistema que toma conta da vida das grandes estrelas do mundo do entretenimento. Um sistema criado inicialmente para a indústria cinematográfica e que hoje ainda atua discretamente: o Star System.


O Star System, ou em uma livre tradução algo como Fábrica de Estrelas, foi um esquema deliberadamente montado pelos executivos de Hollywood a partir da década de 1940 para criar, promover e explorar astros do cinema, que muitas vezes tinham seus nomes mudados e suas personalidades e estilos de vida forjados e controlados. Foi assim que Rock Hudson (nascido Roy Harold Scherer jr.), de sexualidade não assumida, e que morreria vítima de SIDA, foi transformado em um símbolo sexual na mente de todas as mulheres. Temos uma brasileira nesta lista: Carmem Miranda (nascida Maria do Carmo Miranda da Cunha), foi consumida pelo álcool e, acima de tudo, por seu marido-empresário e uma indústria que exigia sempre mais.


Michael Jackson seguiria o mesmo caminho da mãe de sua grande amiga Lisa Minnelli, filha da megaestrela Judy Garland (nascida Frances Ethel Gum). As histórias são praticamente idênticas: início de carreira ainda na infância, problemas com a aparência, abuso de remédios e drogas, instabilidade financeira etc. Garland morreu de overdose aos 47 anos de idade.


No Globo Repórter inteiramente dedicado à Jackson, que a máquina jornalística da TV Globo conseguiu colocar no ar em menos de 24 horas da morte do cantor, um depoimento me chamou a atenção. Era de um brasileiro que havia trabalhado em uma das turnês de MJ. Ao ser perguntado sobre sua relação com o cantor e como era o dia-a-dia, o entrevistado se limitou a dizer que essa relação não existia simplesmente porque Michael era mantido cercado dentro de um núcleo de poucas pessoas que decidiam seus passos. Segundo o brasileiro, Michael parecia “uma pessoa frustrada e que não era senhor da sua própria vida”.


Como pode Michael Jackson se considerar uma pessoa frustrada? Que estrago fez o pai dessa família, visto que a história de humilhações e agressões é mais do que conhecida. Pobre menino rico.


A morte de Michael lembrou ao mundo quem Michael Jackson realmente foi, sua força como artista, seu talento como dançarino. Inovador. Genial. Em poucas horas uma corrida as suas músicas gerou pane em vários sites de compartilhamento mundo afora. O colunista foi um deles que, ao baixar grande parte de seus sucessos, pôde entender mais claramente o tamanho da perda. Sem ouvir MJ há muito tempo, escrevi grande parte desta coluna ao som de Thriller, Ben, Say Say Say, Rock with you, The girl is mine, Billie Jean, Dont stop till you get enough , um sucesso atrás do outro.


É fato que Michael teve seu esplendor na década de 1980, e que depois disso pouca coisa boa produziu. É fato também que, ao olharmos para trás, vemos que Jackson foi com certeza o artista de roupas mais exóticas do show business, para não dizer extremamente bregas. Mas Michael Jackson era um fora de série, e para foras de série não há instrumentos capazes de julgá-lo com acerto e precisão. Michael será referência para a música, mas também para a psicanálise, para a psiquiatria, para a indústria da estética e, agora, para os legistas.

Michael, apesar de sempre parecer fora do tom, ou acima dele, era um pacifista, um ecologista, um pensador do novo milênio antes mesmo de nada disso ser moda. We are the world é de 1985.


Michael foi lembrado, reverenciado e homenageado em todas as culturas, sejam do mundo ocidental, oriental, árabe ou asiático. Aliás, vale conferir um vídeo que circula na internet com uma coreografia feita por todos os presos de uma penitenciária nas Filipinas, emocionante.

A fama matou Michael Jackson. Fama que o encarcerou atrás de mansões, ilusões, máscaras cirúrgicas e casamentos fictícios. Morreu falido mas famoso. Os ingressos para o seu próximo show na Inglaterra tinham sido vendidos ao ritmo de 11 por segundo, eu disse por segundo! Cerca de 800 mil ingressos já tinha sido vendidos para a série de 50 shows.


E eu? Bom, eu saí dali correndo para um shopping revelar as fotos. Como já imaginava, tinham ficado uma bosta. E assim, eu não vendi nenhuma. Ronaldo Cezar Coelho não conseguiu sua candidatura a prefeitura e hoje é considerado um político de carreira medíocre. Glória Maria conseguiu uma entrevista exclusiva com o cantos. Marcinho VP foi assassinado por comparsas dentro do presídio de segurança máxima de Bangu após o lançamento do livro Abusado, de Caco Barcellos, acusado de traição ao Comando Vermelho. A favela Santa Marta, depois de anos sendo um local extremamente violento, hoje é uma das primeiras favelas “pacificadas”, ao menos é o que dizem por aí. Ganhou plano inclinado, escola de informática e casas coloridas. Dizem que vão erguer agora uma estátua de Jackson.


Como diria Vincent Price em Thriller:


Ha hahahahahah ha ha ha ha aha aha ha ha


KF



Em tempo 01: o clipe.

http://www.youtube.com/watch?v=gCqQ2JcQWGs&feature=channel_page

Em tempo 02: o clipe They dont care about us foi refeito em 2006. Muito mais contundente do que o primeiro. Confiram em:

http://www.youtube.com/watch?v=nvWMLAWrEjU

Em tempo 03: coreografia dos presos da penitenciãria CPDRC, nas Filipinas

http://www.youtube.com/watch?v=hMnk7lh9M3o