domingo, 10 de janeiro de 2010

Angra dos Reis

Dos piratas de antes aos piratas de hoje,

a curiosa história de um paraíso ameaçado

Para muitos, Angra dos Reis é vista apenas como uma localidade dedicada ao turismo. Mas a atividade é a mais recente das tantas que já passaram pela região. Hoje, mansões de ricaços, artistas e veranistas em geral, casas simples de pescadores, vilas operárias e favelas, se misturam a uma estrutura industrial de porte extraordinário, incluindo um complexo de energia nuclear. Tudo isso em uma curta faixa de terra encapsulada em um cenário natural estonteante de montanhas escarpadas e mares cristalinos. Uma mistura explosiva.

A tragédia que acompanhamos, exaustivamente, em todos os noticiários, fez despertar no colunista a curiosidade sobre a região. E qual não foi a surpresa!

Como um pouco de História não faz mal a ninguém, vamos voltar um pouco no tempo e entender que lugar é esse. Ou melhor, vamos recuar bastante já que Angra dos Reis é uma das cidades mais antigas do Brasil, completou 508 anos de sua fundação, ocorrida em dia 6 de janeiro de 1502 (São Paulo seria fundada em 1554, e o Rio de Janeiro apenas em 1565), dia de reis, daí o nome de batismo (uma angra é uma pequena baía ou enseada protegida por costas elevadas).

Conhecida hoje como Costa Verde, a região leva este nome justamente pela proximidade entre a Serra do Mar e as águas do oceano Atlântico. As encostas escarpadas terminam praticamente, se não de fato, dentro do mar. Mas o Costa Verde não é apenas pela geografia, entenderemos melhor mais adiante.

Este trecho de litoral é praticamente carente de locais planos para a expansão das cidades. Foi por isso que a vocação da região, durante os primeiros séculos de colonização, foi a agrária.

A geografia por lá é realmente privilegiada, não só pelo verde abundante, mas também pelo salpicado de enseadas e ilhas que se espalham em todas as direções, sendo de tamanhos, formas e proprietários diferentes. Diz-se que são 365 ilhas e ilhotas, uma para cada dia do ano, mas é como dizem, quem conta um conto aumenta uma ilha, e talvez já sejam 366 (na verdade são “apenas” 180).

Esta proteção natural fez daquele litoral um ótimo porto para as caravelas e naus que singravam os mares do Novo Mundo. Não só para aquelas dos países oficiais, como para as não oficiais, dissimuladamente chamadas de Piratas. Com tantas ilhas e enseadas no continente, era fácil esconder não uma caravela, mas uma frota inteira.

Os portugueses perceberam isso e logo instalaram um porto em Angra. A primeira atividade econômica foi o recebimento de escravos, que subiam direto para as lavras de ouro das Minas gerais.

Da chegada de escravos pela região, seguiu-se o ciclo da cana-de-açúcar, com as amplas plantações que havia na região. Acompanhando a história do país, logo viria o ciclo do café. Pé de café, sabe-se lá por quê, prefere os terrenos inclinados, e esta topografia já estava lá. As plantações iam de Mangaratiba (RJ) a Ubatuba(SP), e subiam a serra em direção ao vale do Paraíba.


Donos de quase todo este trecho de litoral, os irmãos José e Joaquim Breves eram ricos e poderosos cafeicultores. Possuíam na região o expressivo montante de seis mil escravos e era através do porto de Angra que os recebiam. Apesar de serem grandes comerciantes de escravos, tendo na Restinga da Marambaia uma fazenda dedicada à quarentena e engorda de negros recém-chegados, e de terem mantido a atividade clandestinamente mesmo depois de abolida a escravidão, José Breves decidiu deixar grande parte de suas fazendas aos negros que haviam lhe servido durante tantas décadas.

No entanto, entregou a administração desta demanda a um certo coronel do exército que, em benefício próprio, acabou desvirtuando a vontade de José Breves e tomou as terras para si, deixando os negros libertos restritos a pequenos enclaves. Os quilombos formados na época ainda hoje existem espalhados pela região. Era o início da especulação fundiária na região.

Apesar de pouco falada nos livros de história, Angra dos Reis tem um papel protagonista em diversos ciclos econômicos desde a colônia. E por onde há dinheiro há ladrões, tantos os de galinha, como, principalmente, os de colarinho bem engomado. Assim, o histórico de riquezas oficiais que passaram pela região se cruza com as irregularidades, maracutaias, negociatas, e contravenções. A Baía da llha Grande era cenário para não só piratas, que assaltavam os navios de carga, como também era o local ideal para o contrabando de ouro, pedras preciosas e escravos, todos sem recolher o quinto da monarquia (quinto = imposto da época pago por toda atividade extrativista, ou seja, pagava-se à coroa um quinto do valor da mercadoria). Essa situação parece que deixou uma herança maldita de irregularidade, de mercado negro, de propinagem para a região.


Angra e o século XX

Entre as décadas de 1930 e 1950, Getúlio Vargas ordena a construção de uma estrada de ferro ligando a cidade de Barra Mansa, no Vale do Paraíba, a Angra, para assim poder escoar a produção da Companhia Siderúrgica Nacional.

Nos anos 70, a ditadura militar, aproveitando um falso milagre econômico, de uma tacada só mandou abrir a rodovia Rio-Santos - que rasgaria as encostas para unir os dois principais estados brasileiros também pelo litoral, instalou na baía da Ilha Grande o Terminal Petrolífero da Petrobras (TEBIG), por onde a empresa descarregava petróleo, e por fim o delírio apoteótico: a instalação, na beira do mar, de um complexo de usinas nucleares, Angra I e Angra II.



E ainda tem mais, entendendo a região como de vocação naval, é instalado também o estaleiro Verolme, fruto de uma parceria com os holandeses. Ou seja, praticamente todo o PIB brasileiro tinha sido concentrado em Angra dos Reis.

Podemos imaginar que estas obras, em um curto período da história, trouxeram para a região uma quantidade enorme de trabalhadores, em sua grande maioria de força braçal. E por lá eles ficaram quando as obras acabaram. Já tinham casa, namorada, mulher, filhos, ou seja, as raízes já haviam se fixado na região. E não poderia ser diferente.

Fica mais fácil entender a quantidade de favelas que hoje emolduram a paisagem da cidade de Angra dos Reis (a cidade tem a maior taxa de crescimento demográfico do país).



E por fim o turismo, que só chegaria nos anos 1980. O modelo europeu seria o escolhido para ser aplicado como estratégia para Angra dos Reis, suas praias e sua ilhas. A francesa Côte d´Azur é usada como padrão de negócio turístico (Côte d´Azur é Costa Azul em francês – agora terminamos de entender o nome “Costa Verde”), e a previsão era a instalação de grandes resorts, além de outros formatos de hospedagem.

A primeira a chegar para explorar a região foi a rede francesa de resorts Mediterranee. E daí a indústria de hotéis e pousadas não pararia mais de crescer em uma região com pouca infra-estrutura e pouca terra plana para se espalhar. O destino seria as ilhas.


A maior e mais bela

A Ilha Grande tem no nome os motivos óbvios. Sendo a maior e mais bonita da região, ficou muito tempo fora das rotas turísticas por um motivo hoje já quase ignorado por quem a freqüenta: foi sede para um outrora famoso e temido presídio.

Desativado e implodido em 1994, a retirada dos detentos abriu caminho para os empreendimentos turísticos, que já se consolidavam em outras praias do continente e ilhotas.

Na verdade a Ilha Grande já estava reservada à exploração muito antes até da chegada dos franceses do Mediterranee. Quando pensaram em levar o desenvolvimento turístico à Costa Verde, o governo militar, através da recém-criada EMBRATUR (1966), já vislumbrava a Ilha Grande como a cereja do bolo.

A estratégia era a de vender o país internacionalmente como um destino tropical, ou seja, florestas, coqueiros e praias de areia branca (e uma rede, é claro...). Sendo assim, é criado em 1971 o Parque Estadual da Ilha Grande. Descuidados, ingênuos ou ainda distantes do que viria a ser o ecologicamente correto, os autores do projeto deixaram claro quais as suas intenções com a criação do parque. Dizia o decreto:

Art. 1º - Fica criado o Parque Estadual da Ilha Grande, com aproximadamente 15 mil hectares, abrangendo terras situadas na Ilha Grande, Município de Angra dos Reis, visando a implantação de Zona de Apoio Turístico e a preservação de Reserva Florestal.

Ou seja, em primeiro lugar estava a exploração do turismo, e ali coladinho vinha a preservação do meio-ambiente. Sutil, mas relevante.


Entre o céu e o mar, a cruz e a espada

A região era um barril de pólvora. Um belíssimo ecossistema ameaçado por duas Usinas Nucleares, um terminal de bombeamento de petróleo, um estaleiro, e a sanha da especulação imobiliária que, irremediavelmente, se instalaria na região com seus condomínios fechados, cerceamento do acesso às praias; desmatando encostas e fraudando documentos e licenças ambientais.

O movimento ecológico, ainda imberbe, contra-atacava. Pressionando o governo, sucessivas levas de ambientalistas foram conseguindo vitórias que buscavam a preservação do ecossistema da região, justamente seu maior patrimônio e atrativo turístico.

Além do Parque Estadual da Ilha Grande, foram criadas outras áreas de preservação que ampliavam e determinavam o nível de ocupação e quais atividades poderiam ser desenvolvidas em cada microrregião. Nasciam a Reserva Biológica da Praia do Sul, o Parque Estadual Marinho do Aventureiro, ambos na Ilha Grande, e ainda a Área de Proteção Ambiental Tamoios, que integra toda a Ilha Grande, as ilhas dentro das baías da Ilha Grande, da Ribeira e da Jacuecanga.

Para entender o acontece no Brasil em termos de preservação ambiental, precisamos compreender uma terminologia complicada, advinda da criação do SNUC, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação(2000), que buscou classificar as diferentes identidades de cada área de proteção.

O SNUC estabeleceu as características das estações ecológicas, das reservas biológicas, dos monumentos naturais, dos refúgios da vida silvestre, e por aí segue. E dentro de cada uma delas outras subdivisões: Zona de Preservação da Vida Silvestre (ZPVS), Zona de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS), e Zona de Ocupação Controlada (ZOC), entre outras.

A Ilha Grande é uma costura destas siglas. Assim como a Ilha Grande é hoje um apinhado de construções irregulares. Não necessariamente ilegais, mas grande parte do que se vê fora da Vila do Abraão, espécie de capital da ilha, está fora das normas de ocupação atuais.

A pousada Sankay e todas as demais construções soterradas pelo desabamento do ano novo estavam dentro de uma ZCVS, uma zona possível de se construir, diga-se de passagem, mas com fortes limitações. Pelo que se viu nas fotos, pelo porte da pousada, é pouco provável que estivesse dentro dos padrões. Mas isso não saberemos, e tampouco importa mais. O que parece importante é o reconhecimento de que a região já chegou a seu ponto de saturação.

Mas por enquanto ainda não existe no horizonte nada que faça parar o crescimento desordenado na região de Angra dos Reis. Seria do poder público a função de gerir e fiscalizar a boa utilização dos recursos naturais e paisagísticos, mas, tristemente, onde há restrições, há corrupção. Onde há fiscalização, há propina, onde há terras, há especulação.

Talvez herança da pulverização descontrolada das terras dos irmãos Breves, hoje a região de Angra dos Reis é uma verdadeira bagunça cartorial. Não se sabe ao certo quem são os verdadeiros donos das terras, documentos se sobrepõe, a mesma terra é registrada para mais de um proprietário, e licenças ambientais para construir condomínios e mansões de luxo são compradas com naturalidade. São os novos piratas a agir protegidos pelas encostas.

Mas há os que ainda tentam moralizar a situação.

Em 2007, o poder público realizou em Angra dos Reis uma grande operação. Chamou-a de Cartas Marcadas. Cerca de 30 mandados de prisão foram expedidos, estando entre os presos funcionários do alto escalão da prefeitura de Angra, da FEEMA (Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente do Rio de Janeiro), políticos, empresários e por pouco não prendiam também o prefeito, à época Fernando Jordão (PMDB).

Não houve punições até o momento.


O governador atrasado

Mesmo tendo passado a sua virada de ano novo na cidade de Mangaratiba, cerca de 60 quilômetros distante de Angra dos Reis, Sérgio Cabral só apareceu no local da tragédia 24 horas depois.

E talvez tenha feito isso pois havia uma carta em sua manga que o deixava comprometido com as causas do acidente. Uma carta marcada pela própria caneta do governador, que havia assinado em junho do ano passado um decreto flexibilizando algumas características do zoneamento da Ilha Grande e toda região da Costa Verde. O decreto 41.921/09 flexibilizava justamente o uso das ZCVS.

Cabral sabia que em algum momento alguém iria se dar conta da relação do decreto com a tragédia. Cabral sabia que iria ter que responder a perguntas. Mas acima de tudo, Cabral sabia que não saberia o que dizer.

Dizem que por trás do decreto existe um pool de homens poderosos, com empreendimentos na região. Uma das fontes para esta coluna garante que entre eles estão um jovem apresentador de televisão, um dono de um jornal outrora poderoso e hoje decadente, e um empresário do setor hoteleiro. Vai saber...

***

Talvez seja hora de parar de sempre colocar a culpa nos outros ou no governo e passar a refletir qual a participação de cada um no processo de degradação ambiental. As construtoras estão ali erguendo novos empreendimentos pois há quem os compre. Pousadas se lançam em sopés de escarpas pois há quem demande hospedagem.

Ao contrário do que parece, a questão ambiental no planeta passa muito menos pelas leis ou grandes convenções internacionais, e muito mais por uma mudança de postura de cada um de nós. Informação e atitude são duas ferramentas que podem mudar o destino das coisas.

Esta tragédia em Angra dos Reis, que não foi a primeira e nem será a última (permitam-me o clichê), vem reforçar o aviso que a mãe-natureza vem dando nos últimos anos: não se deve mexer naquilo que está quieto. E vem ainda com outro recado poderosíssimo: as conseqüências não escolhem hora, dia, ou razão social. O desmoronamento aconteceu durante a madrugada, no dia mais feliz do ano, atingindo ao mesmo tempo o paraíso e a favela.

KF



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