quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A disputa por Honduras

Em abril deste ano, durante a reunião da 5ª Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, presenteou o norte-americano Barack Obama com um exemplar do livro As Veias Abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. No frontispício escreveu: “Com afeto”.

Chávez, um mestre das jogadas ensaiadas, estava na verdade dando um tapa com luva de pelica no mandatário dos EUA, já que o livro é considerado uma obra-prima na análise da turbulenta história dos países latinos em sua busca pela real independência. O livro, fundamentado em uma ampla pesquisa histórica, leitura obrigatória para quem quer entender a América Latina de hoje, expõe a permanente intervenção dos EUA que, a qualquer custo (sempre caro e com vidas), tentava impedir que uma “Nova Cuba” acontecesse no continente americano.

As ferramentas utilizadas sempre foram as mesmas: grana e garra. No caso, as garras afiadas de seus Marines. E a grana sempre vinha camuflada em eufemismos como Cooperação Econômica, Intercâmbio Cultural, e seus etcs Os EUA aproveitavam para instalar suas bases militares internacionais, como a que tem em Honduras (Palmerola Air Base).


Honduras penas

Até semana passada, Honduras era um nome praticamente inexistente no noticiário brasileiro (e quiçá mundial). Uma coisa assim como o Suriname ou a Guiana. Honduras está localizada em uma América Central muito mais distante do que deveria ser. Sabemos mais do Irã ou da China, e isso é um dado importante pois mostra a falta de uma política de relacionamento externo do Brasil com os demais países latino-americanos.

Não há comércio com Honduras, não há turismo com Honduras, não há intercâmbio cultural com Honduras. Não se sabe de um show de artista brasileiro. Não se sabe de cinemas passando filmes brasileiros, não se sabe coisa alguma sobre Honduras. Até agora.

E o fato tem algumas razões de ser. A América Central está de fato desconectada da América do Sul, não só pelas vias econômica, cultural, e turística, mas principalmente geográfica. Sim, territorialmente estamos ligados, mas o leitor ficará surpreso ao saber que não existe uma ligação rodoviária entre os dois continentes. Colômbia e Panamá não têm estrada alguma que os conectem. Curioso, não?

Mas vamos aos fatos, quem é esse homem de bigode e chapéu que agora se abriga na representação brasileira em Tegucigalpa?

Depois de muitas ditaduras, todas financiadas e controladas pelos EUA (a não ser Cuba em sua fase posterior a invasão da baía dos Porcos), a América Latina vive hoje uma boa jornada democrática. Manuel Zelaya, assim como Lula, Chávez e Uribe, foi eleito pelo voto democrático. No entanto, diferentemente dos outros três, Zelaya não tem o direito de se candidatar a uma reeleição.

Nada mais pertinente do que o presidente de Honduras também cogitar uma emenda na constituição de seu país, que desse o direito a disputar um novo mandato. Vejamos bem, Zelaya não estava impondo seu nome, não estava dando um auto-golpe em sua carta magna, estava apenas propondo um referendo para que a população hondurenha, um país com cerca de 7,5 milhões de habitantes, decidisse o seu ciclo presidencial.

Sim, estou ciente de toda a discussão sobre o pilar da democracia, que é isso que chamam de Alternância do Poder. Segundo os estudiosos, a democracia estará salvaguardada se não elegermos, no caso do Brasil, mais que duas vezes a mesma pessoa. Não sei quem fez a conta, mas sei que a decisão parece ser a de chamar o eleitor de burro.

Sim, sabemos que um mandatário no posto pode (e o fará, você não faria?) usar da máquina administrativa-publicitária para se manter no cargo ad eternum. Mas admitir isso é o mesmo que dizer que o povo é uma massa manobrável. O que talvez, lamentavelmente, seja mesmo verdade. Mas não pode ser tão presumível assim.

E tem outra, nada garante que o titular da cadeira seja reeleito. É só olharmos as eleições no Brasil, são vários os casos de candidatos que simplesmente não se reelegeram. Pensando assim, também seria cabível acreditar que o titular elegeria o seu indicado, como fazemos agora com Dilma, mas nada garante que vencerá, aliás, pelo que vimos até agora, ainda tem poucas chances.



A reeleição é boa para a Democracia. No entanto, apesar da argumentação dos parágrafos acima, ainda não tenho uma opinião formada sobre a quantidade de vezes que um indivíduo possa se candidatar para o mesmo cargo que ocupa. É uma matemática que não quero que façam por mim. Talvez fosse interessante experimentar para testar (opa lá, não estou defendendo o terceiro mandato do Lula!!!).

Mas Zelaya queria apenas mais um mandato. E também não podemos entrar em uma paranóia chavista de que agora todo mundo vai querer se eternizar no poder. Muita calma nessa hora!

Eu sei que é difícil defender um homem que se apresenta com um ridículo chapéu de vaqueiro e um anacrônico bigodão, assim como tem ficado cada vez mais difícil defender Hugo Chávez, que nos empurra para longe cada vez que cerceia a liberdade de imprensa em seu país, entre outros impropérios.

Inspirado nos colegas sul-americanos, Zelaya propôs um plebiscito sobre a reeleição. Plebiscitos são instrumentos legítimos dentro da democracia. Nós brasileiros já optamos entre Presidencialismo, Parlamentarismo, República e Monarquia, tendo assim o direito soberano de escolha. É claro que o leitor pode dizer que o eleitor pode ser manipulado da mesma forma, mas não tem jeito a não ser insistir na democracia.

Plebiscitos já aconteceram inclusive na Venezuela, com derrota de Chávez, que pretendia aprovar a reeleição ilimitada em sua constituição. Curiosamente, a derrota foi “festejada” pela imprensa mundial. Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, acaba de receber o sinal verde de seu Congresso para que realize um plebiscito para garantir-lhe o direito de disputar um terceiro mandato. Curiosamente houve pouco estardalhaço na imprensa mundial. Ao povo hondurenho foi negado sequer o direito de um plebiscito. De dizer: esse cara está indo bem, vamos dar mais quatro anos para ele.

Mas Zelaya é um cara teimoso e insistiu na jogada. Só que não esperava que seu comandante militar se negasse a instalar as urnas para o plebiscito. No dia seguinte, o destituiu do cargo. Daí foi ladeira abaixo.

O presidente de Honduras não deve ser muito querido por seus pares na vida política daquele país. Foi só abrir um flanco para que a Corte Suprema, o Congresso Nacional e os militares conduzissem um julgamento sumário, sem direito de defesa, condenando-o ao exílio involuntário.

Assim sendo, na madrugada do último 28 de julho, militares encapuzados invadiram a residência oficial e o seqüestraram. O ainda presidente foi colocado à força em um avião, ainda de pijama, e levado para a Costa Rica. Zelaya afirma que o avião fez uma escala em uma base norte-americana em território hondurenho, o que colocaria em suspeita a participação dos EUA em mais este golpe de estado latino-americano. O colunista, particularmente, tem poucas dúvidas sobre a participação de Washington no episódio. Conhecendo a influência dos EUA na região, é muito pouco provável que os golpistas fariam qualquer movimento sem antes consultar o governo Obama.










Não deu no jornal

Mas o que realmente me chama a atenção em todo este caso é a perda de foco nas reportagens feitas pelos grandes jornais. Ao invés de se reforçar as críticas ao governo golpista, intensificando a pressão pela volta do presidente eleito, passou-se a discutir sobre a legitimidade da participação brasileira no episódio e se o gesto é ou não uma intromissão em assuntos internos daquele país.

Não podemos cair tão facilmente neste argumento. Se fosse assim, o mundo não teria nada o que fazer com as ditaduras mundo afora, tolerando-as de forma obediente e passiva. Foi com este tipo de postura que figuras como Adolf Hitler cresceram em seus países. O respeito à soberania é inabalável, mas Honduras, ao ter um governo golpista controlando o país, fechando jornais, decretando estado de sítio, atirando em pessoas, prendendo às centenas, cortando as liberdades individuais, perde imediatamente qualquer legalidade que poderia ter.

Ao chamar o golpista Roberto Micheletti de presidente, a imprensa ingenuamente (ou não) o legitima no cargo. Ao classificar, por exemplo, as ações do MST de invasões e não de ocupações, a imprensa demonstra que escolhe nos adjetivos o lado da história em que está. Portanto, o mesmo deve se aplicar ao imbróglio atual, a não ser que estejam apoiando o golpe.

A opinião pública deve ter muito cuidado com o que lê, pois o arranjo das palavras não só confunde com induz. Vejamos uma pesquisinha conduzida pelo jornali O Globo em seu formato on line. A pergunta era: O Brasil deve entregar Zelaya ao governo interino de Honduras? Mas são nas respostas oferecidas que constatamos a manipulação. Não se tem um simples sim ou não, as repostas oferecidas são: “Não, deve continuar firme na defesa do presidente deposto” e “Sim, deve deixar que Honduras decida o destino do líder deposto”. Os jornalista do O Globo só podem estar brincando. Primeiro chamam o governo golpista de governo interino, depois induzem o leitor a privilegiar uma suposta soberania de Honduras que na verdade é altamente questionável neste momento; O resultado? É claro que deu a opção Sim, com 66% dos votos. Palhaçada.

Sim, Zelaya forçou a barra ao tentar impor o seu plebiscito fora de hora (afinal, teve a idéia em ano eleitoral), mas a punição imposta parece que já vinha sendo gestada há tempos, só aguardando uma oportunidade de aflorar.

Alguns outros fatos devem ser levados em consideração. Manuel Zelaya é hoje um aliado oficial de Hugo Chávez, visto que em 2008 aderiu a Aliança Bolivariana para as Américas, movimento liderado pelo presidente da Venezuela. Zelaya também vinha “desagradando” a elite hondurenha, justamente aquela que o tinha apoiado em sua eleição. Os desagrados teriam sido o aumento de 60% no salário mínimo, em um país onde 70% da população está na linha de pobreza, e um aceno de uma possível estatização de alguns setores da economia. Os ricos ficaram em polvorosa.

Não sabemos se Zelaya seria reeleito (e provavelmente não saberemos mais). Se foi tão ruim assim como governante, que deixassem as urnas provarem. Se havia suspeitas de uma possível fraude, que fosse convocada uma missão de observadores da OEA. Nunca um golpe.

Aliás, falando em Organização dos Estados Americanos, ONUs e afins, a atuação pífia já não é novidade. De que servem estas organizações? Desde o episódio das Armas de Destruição em Massa no Iraque, quando os EUA desrespeitaram a orientação do Conselho de Segurança para que não fizessem uma intervenção militar, que esta instituição perdeu a sua razão de ser. Não entendo o porquê de Lula perseguir tanto o objetivo de ocupar uma vaga em um conselho enfraquecido. Por enquanto, a OEA tem feito o que sempre faz, redige em uma folha de papel uma condenação, um protesto qualquer, e fica aguardando para ver se faz efeito. Santa pantomima!

Ao invés de discutirmos a participação do Brasil no caso, devíamos estar condenando em altíssimo tom o golpe de estado em Honduras. Não estamos falando de um país distante onde os regimes totalitários são costume, estamos falando de um país democrático localizado logo ali, que há muito devíamos ter nos aproximado.

O Brasil deve exercer este papel, mas não devemos confundi-lo com aquele mantido pelos EUA ao longo de nossa história recente. Temos sempre a predisposição a achar que um país que interfere na vida de outro será necessariamente pela via do imperialismo e subjugação. O Brasil, como é de seu costume, do costume de sua cultura e do seu povo, pode apresentar um novo modelo de política externa, um novo modelo de postura democrática.

Lamentável também que políticos de oposição aproveitem do momento para alavancarem as críticas ao atual governo. Pobre oposição...

No mais, quem sabe um dia conseguiremos, enfim, vencer o nosso complexo de vira-latas!

Apesar de não merecer, Viva Zelaya!! (mesmo com sua figura patética)



KF



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