quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A história de Cadinho

No filme Sociedade dos Poetas Mortos, um então pouco conhecido ator chamado Robin Williams eternizou uma expressão que seria grafada em prefácios de livros, tatuadas em braços e ombros, impressa em camisetas e usada e abusada na publicidade: Carpe Diem.

Uma tradução direta do latim? Colha o dia (os filósofos gregos sempre com sua interessante visão de mundo).

Seu significado ampliado? Aproveitar a vida ao máximo, sugar o seu sumo, impregnar-se de sua essência.

A história que trago hoje é de uma pessoa que, independente de doutrinas, campanhas publicitárias ou crenças religiosas, elevou à quintessência o mote de Williams.

A biografia de Ricardo começa em um dia qualquer, em um momento qualquer da vida que ele até então levava.

Ricardo é um carioca de bem com a vida. Uma vida que sempre foi boa, e que ele, generosamente, retribuía sendo bom com tudo o que o cercava: família e amigos. Aos 22 anos, chegava ao final de sua formação acadêmica. Seguindo os passos do pai, estava se formando em Administração de Empresas. Filho de Márcio e Mara, irmão de Patrícia.

Foi de Mara a decisão de mudar de médico. Um hábito salutar ao longo de nossas vidas, tanto para o paciente quanto para o profissional. Pela nova escolha, é fácil perceber que Mara não costuma negociar com a qualidade dos produtos e serviços que consome. Levou a família para um check-up com um dos melhores profissionais atuantes no país, o médico João Pantoja, diretor do hospital Copa D’Or (Pantoja foi um dos médicos envolvidos na tratamento do cantor Herbert Vianna).

Ao receber os novos clientes, Pantoja decidiu, curiosamente, incluir um procedimento pouco usual na rotina de um check up para alguém tão jovem, um raio-x de tórax e abdômen.

Com o resultado dos exames em mãos, João deve ter sentido um frio descendo pela espinha. As manchas que via no sistema digestivo de um jovem de 22 anos só poderiam ser uma coisa. E essa doença tinha um nome. O nome mais aterrorizante que uma pessoa pode se deparar. Um nome tão forte que ainda hoje habita na esfera do indizível, dos tabus.

Pantoja não mediu as palavras. O tratamento só estaria disponível nos EUA.

Ao perguntar quando isso deveria ser feito, Márcio ouviu a resposta que não gostaria de ouvir: “Amanhã!”.

Os recursos e decisões que Márcio moveria a partir daquele dia, iriam alterar definitivamente o seu modo de ser, o seu trabalho, a sua vida.

Em 48 horas Ricardo dava entrada no hospital Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, na cidade de Nova Iorque. Um dos melhores, se não o melhor centro de tratamento de câncer no mundo. E é da sala de espera deste hospital que a história de Ricardo, chamado de Cadinho pelos mais próximos, iria começar a cruzar com a do colunista.

Sem avisar aos pais ou a ninguém, Cadinho escreveu uma carta aos amigos. Enviada pela internet, começava assim:

Fala Galera, desculpe a demora, mas durante muito tempo fiquei escolhendo as palavras certas para escrever para vocês. Como vocês sabem, as coisas estão difíceis por aqui. Difíceis de não estarem correspondendo as minhas expectativas. Como sabem, por três vezes tive notícias desagradáveis, e por três vezes entrei em choque. Primeiro foi a descoberta no Brasil de um tumor. Segundo, o diagnóstico, assim que cheguei em NY, de tumor maligno(...). E por fim o diagnóstico final e verdadeiro, como vocês sabem, estou com câncer e o mesmo já se espalhou”.

Apesar da dura realidade, curiosamente o texto transmitia uma serenidade, uma postura madura demais perante a vida para um moleque recém saído da adolescência. E a coluna desta semana é justamente sobre isso, sobre algo que vai muito além do que quer que se possa expressar em palavras.

Cadinho “entrou” em Carpe Diem, ou talvez sempre tenha estado. A diferença é que, a partir daquele momento, ele passou a emanar e contagiar a todos os que o cercavam com esta energia.


A palavra que não queremos ouvir

Para entender melhor do assunto, visto que a informação praticamente não circula fora do eixo paciente-médico, o colunista resolveu pesquisar um pouco mais sobre a doença. Uma doença que de tão aterrorizante, fica jogada ao preconceito e à desinformação.

E qual não foi minha surpresa ao, finalmente, entender o que é o tal Câncer e, permitam-me, o quanto de poesia e ensinamentos podemos aprender com esta doença. Pois sim, doenças nada mais são do que ensinamentos à humanidade, mostrando os caminhos certos ou errados que estamos trilhando, e nos lembrando sempre que devemos ao Tempo, uma dose de humildade, e à Vida, uma dose de respeito.

Somos um amontoado de células. Mas precisamente 1 trilhão delas. Isso mesmo, 1.000.000.000.000 de células que formam dos nossos ossos aos nossos fios de cabelo. E elas não param de se multiplicar do momento da fecundação até o último suspiro dos pulmões.

Cada célula já nasce com seu prazo de validade. Com sua missão a cumprir. Algumas podem durar apenas algumas horas, outras ficarão conosco por muitos anos, e outras ainda, como os neurônios, nos acompanharão até o fim da vida.

E isso tem um nome: apoptose. O termo vem do grego antigo (olha o latim aí de novo gente!) e faz referência a queda das folhas no outono. Então, o que se tem é a idéia de renovação constante. É como se fizéssemos uma troca de pele como as cobras, só que em nosso caso, uma troca invisível.

Mas acontece que, por uma série de motivos, vez por outra aparece uma célula que se nega a cumprir o seu papel. A célula, então, passa a crescer descontroladamente, se transforma em um alien celular, buscando sua nutrição em outras células saudáveis. Não só isso, a célula cancerosa passa a ter a capacidade de se locomover, invadindo outros tecidos, podendo se alojar em praticamente qualquer parte do corpo, ou mesmo em múltiplas localizações.

A célula cancerosa nada mais é do que uma célula que se rebelou ao seu curso natural, uma célula que se negou a morrer. O curioso é que, ao tomar esta decisão, não sabe a célula que estará levando junto seu hospedeiro, irá matar justamente aquilo que ajudou a criar.

Então o câncer é isso. Talvez devamos ter com esta doença o mesmo cuidado que tivemos com a Lepra. De tão estigmatizada, conferia aquele que a possuía não só o drama da descaracterização, mas também o escárnio e o alijamento da sociedade, além da morte iminente. Com a lepra tivemos que mudar o seu nome para que, livres do preconceito, pudéssemos avançar no diagnóstico e na cura. Hoje a lepra é conhecida apenas como Hanseníase, em homenagem ao seu descobridor, o norueguês Gerhard Hansen.


Informação é cura

Ao saber da gravidade e do raríssimo tipo de câncer que estava alojado no estômago de seu filho, Márcio tomou uma decisão radical (entendendo radical como aquilo que tem raízes): interrompeu todas as atividades profissionais que mantinha e se lançou em uma busca incansável por conhecimento.

Debruçado sobre a tela do computador, Márcio vasculhava o planeta em busca de informação, novas práticas, novas pesquisas, drogas experimentais e qualquer traço de conhecimento que pudesse ser aplicado ao caso de Cadinho.

E não seria tarefa fácil. Ricardo havia sido diagnosticado com um tumor. Mais que isso, um tumor maligno. Mais que isso ainda, um tumor maligno metastático, ou seja, já espalhado em diversos órgãos. E ainda tinha mais. Ricardo havia sido diagnosticado com um câncer raríssimo e agressivo, que de tão raro, sequer tinha um nome ou uma tradução para o português. Cadinho carregava em seu corpo um DSRCT, ou Desmoplastic Small Round Cell Tumor.

Para se ter uma idéia da baixíssima incidência deste tipo de câncer, são registrados por ano apenas 50 casos em todo o mundo. Segundo o INCA (Instituto Nacional de Câncer), para o ano de 2010 são esperados, de acordo com as estatísticas e prognósticos, cerca de 50 mil novos casos de câncer de mama, outros 27 mil casos de câncer no pulmão e ainda 21 mil de câncer de estômago, apenas citando algumas variações, apenas citando o Brasil.

Cadinho tinha uma doença que incidia em apenas 50 pessoas por ano, no mundo!

Márcio soube então, economista que era e conhecedor das regras do mercado, que não haveria interesse da indústria farmacêutica, nem dos laboratórios, na busca de drogas específicas para este câncer. Pois não vá o leitor pensar que todos os cânceres são tratados da mesma forma. Uma sessão de quimioterapia nada mais é do que a administração de um coquetel de drogas para aquele paciente com aquele tipo de câncer, naquele estágio específico. Ainda mais, o câncer percebe que estão tentando destruí-lo, e com isso muta-se para ficar resistente aquele tipo de quimioterapia.

Então, além do pouco que sabemos sobre o câncer, o que sabemos é isso: o combate a um inimigo camaleônico, um inimigo silencioso, um inimigo se escondendo dentro de nós mesmos, um inimigo que somos nós a alimentar e fortalecer.

Para tornar a situação ainda mais dramática, o resultado do primeiro raio-x chegou no semestre de sua formatura no curso de administração na PUC. A reação de Ricardo não pareceu a de um jovem com apenas 22 anos, mas sim de um ancião, de um sábio, de um mestre. Pediu a conivência da família no silêncio que manteria até que o resultado definitivo viesse. Não queria estragar a festa.

E seria assim pelos anos seguintes. Não no silêncio, mas em um pacto não verbal entre a família, onde cada um assumiu um papel na administração da doença. Mara era responsável pela medicação e por manter o alto astral, sempre aparecendo a cada manhã com novos projetos e novas idéias. A irmã Patrícia cumpria um papel semelhante. Márcio se debruçou na busca por caminhos que levassem a cura, e à Cadinho sobrou o papel de viver, curtir a existência, Carpe Diem.


Enquanto isso...

Para os médicos do celebrado Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, Cadinho tinha pouco tempo de vida. Seis meses depois da primeira quimioterapia e de uma intervenção cirúrgica para retirada dos tumores visíveis, os exames mostravam o retorno quase completo da doença. A família solicita então uma nova intervenção cirúrgica. O Sloan-Kettering se nega a operar.

Com a frieza com que são conhecidos, os médicos norte-americanos, ao se depararem com o DSRCT, solenemente decretaram que Ricardo recebesse alta e retornasse ao Brasil. Nas linhas minúsculas, o subtexto estava claro: volte para morrer entre os seus.

Nos anos que se seguiram, Márcio focou sua vida em uma intensa pesquisa. Mais do que isso, sentindo-se desamparados pela indústria da saúde, a família decidiu assumir o tratamento, e mais ainda, num gesto ousadíssimo, decidiu assumir a pesquisa e a administração de novas drogas e terapias, coordenando grupos de pesquisa e interagindo com pesquisadores e laboratórios que pesquisavam novos protocolos. Naturalmente com o consentimento de Ricardo e o acompanhamento e parceria de médicos em vários países.

Márcio me contou que a primeira coisa que aprendeu foi que as estatísticas não funcionam no câncer. E que o primeiro round seria contra o tempo. Eles tinham que ganhar tempo.

Na medida em que ia conhecendo mais profundamente a doença, e se posicionando com conhecimento de causa, Márcio passou a ser respeitado e ouvido pela comunidade médica - uma classe já costumeiramente presunçosa e corporativista - chegando ao ponto de influenciar em decisões para novos protocolos quimioterápicos.

Como o Sloan-Kettering não quis mais tratar o câncer de cadinho, não querendo assumir, eventualmente, o óbito daquele paciente, a família decidiu buscar em outro super-hospital a continuidade do tratamento. Mudaram-se para o The Mount Sinai Medical Center, também em Nova Iorque. Iniciariam ali uma batalha campal contra a doença que atravessaria oito cirurgias, 12 protocolos diferentes de quimioterapia, cada um com uma média de seis sessões, duas radioterapias, um transplante de célula-tronco e uma imunoterapia. Os médicos que acompanharam o caso eram unânimes em relatar que nunca tinham visto uma resistência tão grande aliada à tamanha alegria de viver. Ficavam surpresos como Ricardo encarava a sua realidade com naturalidade.

Cadinho seguia a sua vida. Namorava, montava sua empresa. Como o pai, trabalhou no mercado financeiro. Foi um dos fundadores da Casa do Saber, um centro de cursos livres hoje bastante conhecido no Rio de Janeiro e São Paulo. Freqüentava o carnaval de Salvador, saía em Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Ou seja, seguia curtindo a vida adoidado. Era esse o seu papel.

A ponte-aérea Rio-Nova Iorque era intensa. Na volta, Márcio sempre trazia novas drogas, algumas recém lançadas ou mesmo em testes. Márcio passou a receber em seu apartamento pacientes de câncer e seus familiares. Discutiam os tratamentos, se aconselhavam, se apoiavam. Com o conhecimento cada vez mais apurado, Márcio não só debatia com médicos sobre os caminhos a seguir nas pesquisas, como filtrava informações conflitantes e recomendava alguns tipos de tratamento a esse grupo.

Márcio não tinha tempo a perder. Ele sabia que, para chegar ao mercado, uma nova droga consumiria 20 milhões de dólares e 10 anos em pesquisas e testes antes de ser liberada. Até mesmo em ervas medicinais ele foi buscar uma chance de ganhar tempo. Testou a cúrcuma, ou açafrão-da-terra, que hoje é testada em combinação ao medicamento Tamoxifeno.


Oncologistas: porta-vozes do mal?

Conversei com o oncologista Carlos José Coelho de Andrade, Ex-chefe de oncologia clínica do INCA - Instituto Nacional do Câncer, sobre esta difícil tarefa, a de não só ser o porta-voz de uma doença potencialmente letal, como também de ser aquele que acompanhará o paciente em seus momentos finais.

Carlos José me contou que hoje já existe uma corrente de pensamento entre alguns profissionais que praticam o que eles chamam de “Breaking Bad News”, ou a prática de quebrar uma notícia ruim em partes. “Dar uma notícia ruim é um momento importante neste processo. Dar uma notícia ruim envolve passos, saber o que a pessoa já sabe, oferecer a informação no tempo da pessoa, estar preparado para lidar com a reação do paciente, manifestar compaixão no olhar, no toque, minimizando assim o sofrimento do paciente e também do profissional que muitas vezes, para tentar manter a frieza necessária, se coloca distante no processo”, diz ele. O oncologista destaca ainda que a síndrome de burn out (um alto nível de estresse vivido por profissionais que atuam sob pressão) é alta entre profissionais da saúde neste segmento.

Carlos José tem 16 anos de profissão. Pode-se imaginar quantos pacientes já acompanhou. Segundo ele, a compreensão do que é a Vida faz a diferença na hora de se deparar com seu fim. Assim como a formação religiosa também influi neste momento.

Momento, aliás, que é visto por alguns estudiosos como um período especial da vida. São vários os casos de pessoas que afloram o seu melhor neste instante. Deparadas com a finitude, com o não ter mais tempo a perder, valores são reposicionados, crenças são reavaliadas, o ser se ilumina. “A vida pode ficar mais interessante depois que você percebe como as coisas são maravilhosas”, reflete Carlos José.

O ex-chefe de oncologia clínica do INCA aproveita o contato com o colunista para fazer um alerta: o câncer está crescendo e, para 2030, é tido pelas instituições internacionais de pesquisa como a principal causa isolada de mortes. Sendo que 70% dos casos são e serão relacionados ao tabaco, a má alimentação e ao sedentarismo.

Mas Carlos fez questão de lembrar que o diagnóstico do câncer não é uma sentença de morte. Quanto mais cedo diagnosticado, melhores as chances de cura. “O problema é o medo do desconhecido, isso afasta muita gente dos consultórios. Já tive pacientes que, ao saberem da possibilidade de estarem com câncer, nunca mais voltaram para a próxima consulta. Isso é um erro gravíssimo!”, diz.

Carlos José é um médico que foge aos padrões rígidos da classe, afinal ele vem estudando a medicina ayurveda, praticada há milhares de anos pelos hindus na Índia e com um entendimento mais amplo da medicina, incluindo ai um acompanhamento também da alma da pessoa, de sua essência, de sua subjetividade. Carlos entendeu que “a morte não pode ser considerada uma derrota. A morte é uma etapa da vida como o nascer. Devemos sempre continuar vivendo, já que não sabemos quando vai terminar nossa vida. O futuro é apenas uma possibilidade. A única coisa que dispomos é o agora”.


A Passagem

Durante seis anos e dois meses, Cadinho seguiu desafiando as estatísticas. Sempre sorrindo, nunca falava sobre a doença. Tinha uma alegria de viver, era conselheiro dos amigos. Certa vez chegou a comentar com seu médico nos EUA que estava muito preocupado com os pais, pois eles não estavam mais vivendo suas vidas.

A cada três meses era feito um exame. Nos seis anos nunca houve uma melhora. Ricardo não se alterava. Não queria que os outros sofressem. Nunca reclamou da vida, nunca praguejou: “Por que eu?!”.

Curiosamente, Ricardo parece ter passado incólume às cinco etapas do processo de morte definidos pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross, autora da famosa publicação “On Death and Dying” (Sobre a Morte e o Processo de Morrer) como sendo a Negação, a Raiva, a Negociação, a Depressão e a Aceitação de que a morte é inevitável.

Márcio sentiu, no final, que Cadinho cumpriu o seu papel de mostrar uma força de viver admirável e uma dedicação aos amigos inabalável. Ao longo dos seis anos, a família viveu a doença que, apesar de maltratá-los no coração, uniu-a “em um momento de amor intenso”, como definiu Márcio.

Ricardo foi tratado no The Mount Sinai por um dos mais respeitados oncologistas em atividade, Dr. James F. Holland. Ao saber da morte, Holland mandou a seguinte mensagem à família:

“Prezados, a sua perda é uma que eu compartilho. Existe um pilar na oncologia que é o de não se deixar envolver emocionalmente com o paciente pois, com a possibilidade da perda, em repetidas ocasiões, pode-se gerar um estresse crônico no médico, incapacitando-o para futuros atendimentos. Eu quebrei este ensinamento com o Ricardo. Ele foi um jovem especial e eu investi muita emoção e trabalho na busca de sua cura. Ele foi um paciente exemplar pois entendeu tudo o que estava em jogo. No entanto, nunca reclamou nem se sentiu injustiçado. Ele enfrentou com grande coragem e alegria os desafios que se apresentaram, me fazendo acreditar novamente que não é hora de me aposentar aos 84 anos de idade. Há muito o que se fazer e Ricardo me inspirou a continuar. Sinto-me honrado em tê-lo conhecido”.

Cadinho foi cremado em um domingo de sol no dia 13 de setembro deste ano. Compareceram a cerimônia mais de 300 amigos. Curiosamente, e sem combinação prévia, todos vieram de branco. “Foi uma celebração da vida”, diz Márcio.

Não houve qualquer serviço religioso. Com um microfone e uma caixa de som, os amigos se sucediam ao contar histórias alegres que viveram com ele. “A gente queria que a mensagem dele seguisse adiante: curte a vida, curte cada momento!”, me disse Mara. O ato de sétimo dia foi um pagode com direito a samba e caipirinha, no que ficou conhecido como o Pagode do Cadinho, marcado agora para acontecer anualmente, só para amigos.

Ao contrário do que pareceu até agora, o colunista nunca conheceu Ricardo. E nossas vidas só se cruzaram por conta do anúncio que Márcio, Mara e Patrícia colocaram no obituário do jornal O Globo naquele domingo 13 de setembro. Não sou de ler com atenção esta seção. Passo os olhos apenas para, nem sei bem por que, saber quem foi dessa para melhor, como dizemos no popular. Mas o texto inusitado me chamou a atenção. Primeiro pelo volume e estilo do texto, segundo pela primeira frase, muito incomum onde estava: “Fala galera” (o texto na íntegra está no final da coluna). O colunista saberia depois que não só ele, mas dezenas de pessoas procurariam a família emocionados com o texto, que seria também debatido em programas de rádio ao longo daquela semana e comentado a esmo pela cidade.

Aliás, esta foi minha última pergunta para ele, porque haviam decidido publicar aquele anúncio e dar a entrevista? Márcio me disse que era tão somente para que o recado que Ricardo deixou seguisse adiante.

O colunista entendeu que seria uma boa história para contar, e, mais ainda, uma excelente história para fechar 2009. Nos finais de ano, essa época em que tendemos a parar e avaliar o que já passou. Um período propício para uma reflexão mais profunda sobre a nossa existência e sobre a forma como vimos colhendo o dia nosso de cada ano.

Carpe Diem

KF



RICARDO FAINZILIBER

(CADINHO)

29-01-1981 12-09-2009

Fala galera,

Desculpe a demora, mas durante muito tempo fiquei escolhendo as palavras certas para escrever para vocês, e acabei não escrevendo nada. Como vocês sabem, as coisas estão difíceis por aqui. Difíceis no sentido de não estarem correspondendo as minhas expectativas. Como sabem, por três vezes tive notícias desagradáveis e por três vezes entrei em choque. Primeiro a descoberta no Brasil de um tumor. Segundo, o diagnóstico, assim que cheguei em NY, de tumor maligno, mas não apresentando metástase. E por fim o diagnóstico final e verdadeiro, como você todos sabem, estou com câncer e o mesmo já se espalhou (essa foi a pior das notícias e a que mais demorei a me recuperar). Para os que não sabem, meu caso é um pouco complicado por se tratar de um tumor raro e quase desconhecido. Bom agora que já sabem os fatos científicos, esqueçam tudo.

Estou ótimo e muito feliz. Minha família tem sido fundamental neste momento, assim como o apoio de meus amigos. Obrigado a todos. Ainda estou me recuperando da cirurgia e em breve estarei começando a quimioterapia. Optei por fazê-la aqui por razões médicas. Mas dentro de alguns meses estarei voltando ao Brasil para dar um abraço em vocês.

Como vocês sabem, quimioterapia é um pouco complicado. Náuseas, enjôos, perda de cabelo, falta de apetite... mas no mais é tranquilíssimo. Hehehe. Logo agora que acabei de cortar meu cabelo. Droga!

Estou brincando. Óbvio que não me agradam esses efeitos colaterais, mas também não serão eles que me farão perder toda confiança, força e energia que consegui atingir.

Me surpreendo a cada dia. Faço questão de ao levantar da cama olhar para a janela e me fortificar observando a natureza e a vida. Estou muito feliz também com tanta energia e pensamentos positivos que tenho recebido. Desde missas, orações, grupos de meditação, a simplesmente pensamentos carinhosos. Sem dúvida tudo isso esta chegando até mim e está me ajudando nesta luta. Eu sou mais eu, aliás, sou muito mais eu....

Nada me abalará assim tão fácil, não se preocupem com isso. E quando tudo acabar, em breve, estarei de volta compartilhando todos os momentos que passei, todos os medos, todas as felicidades, todos os sentimentos que sem dúvida terão me engrandecido. Afinal, tudo na vida acontece por uma razão. Como não sei qual foi a dessa, estarei tirando lições a cada dia.

Espero que vocês já tenham percebido a mais clara das lições. A vida é muito frágil. Não complique, busque a felicidade de forma simples, custe o que custar. Outra coisa fundamental que aprendi: tudo na vida é relativo. Quando você se encontrar estressado, com problemas, analise bem a situação e reflita: será realmente este problema digno de tanta tristeza e preocupação? Talvez não. Tenho compromisso médico, mais ainda quero ver se consigo escrever mais um pouco do que tenho passado e sentido, mas isso fica pra mais tarde. Afinal, o dia está apenas começado.

Amo vocês!!!

Ricardo Fainziliber

sábado, 31 de outubro de 2009

Belém do Pará em estado de Círio

O leitor já deve estar cansado de ouvir que o Brasil é a maior nação católica do mundo. Para provar isso, alguém fez uma conta, somou a uma projeção, chegando a uma estimativa. E nisso temos hoje no Brasil cerca de 125 milhões de católicos, segundo dados do IBGE de 2000, ou 155 milhões segundo o Vaticano 2007, para uma estimativa de 1 bilhão de católicos mundo afora.

Descontados o exagero estratégico da Santa Sé e a defasagem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mesmo assim ainda somos imbatíveis no quesito. Nada que seja motivo de orgulho ou desespero, apenas um dado.

Não seria de se espantar que também aqui existisse a maior celebração católica do mundo. E de fato existe, embora, curiosamente, ela seja considerada pelos principais meios de comunicação do país, todos situados no eixo Rio-São Paulo, como apenas uma das maiores festas religiosas do país.

“Uma das” sequer dá ao Círio de Nazaré a posição de soberana em seu próprio país, e a este fato o colunista tem uma dica do porquê acontece. Mas isso vamos ver ao longo da coluna desta semana. Antes há curiosidades mais importantes a falar.

O fato é que o leitor ou a leitora da coluna devem estar se perguntando: por que o colunista, que se declara ateu, volta tanto ao tema das religiões, fé, almas etc?

Resposta: não tenho a menor idéia...

Belém do Pará

O norte do Brasil é uma região maravilhosa. Privilegiada e visitada por turistas de diversos países, a Amazônia é uma nobre desconhecida do resto do país, entendendo o resto do país como o Sul-Sudeste.

Sabemos alguma coisa de Manaus (Zona Franca, Teatro Amazonas, Ciclo da Borracha e olhe lá...). Rondônia? Roraima? Amapá? Esquece! O Pará, um gigante de mais de 1 milhão de quilômetros quadrados (caberiam uma França e uma Espanha, com sobras), também não fica muito claro em nossas mentes quando seu nome é pronunciado.

Pois bem, foi pensando nisso (conhecer e divulgar melhor o Brasil) que o colunista voltou pela segunda vez à Belém para uma visita de trabalho em busca de patrocinadores para uma exposição fotográfica, fruto, naturalmente, da primeira viagem na virada de 2007.

Depois de muitas idas e vindas em negociações com a Secretaria de Cultura do Pará, foi que finalmente consegui uma audiência. E adivinhem em que momento cheguei em Belém? Isso mesmo, justamente no meio do Círio.

Digo no meio pois o Círio é um evento que acontece intensamente durante 15 dias. E não estamos falando de ir ali acender uma vela ou rezar uma missa enfadonha. O Círio de Nazaré é algo que nunca havia visto antes em tamanho, seriedade, devoção e volume, em todos os sentidos. E assim que me dei conta, não tive dúvida, estava ali o próximo tema da coluna.

Padrinhos divinos

Se há católicos em um país, este certamente terá uma Padroeira. Santos protetores e milagreiros são uma tradição nestas culturas. O Brasil tem a Nossa Senhora Aparecida. O México tem a sua Nossa Senhora de Guadalupe, Portugal, Nossa Senhora da Conceição, e Nossa Senhora de Copacabana, na Bolívia, e até a China tem a sua: Nossa Senhora da China.

Pra quem está chegando agora ou simplesmente ignorava o fato, como eu, todas são a mesma pessoa. São os diversos nomes da Virgem Maria, Mãe de Jesus, Mãe de Deus, Virgem Santíssima, apenas para citar mais alguns. Outra curiosidade é que, em sua grande maioria, os nomes estão ligados a aparições, seja da própria, como no caso mexicano quando apareceu para um índio, deixando sua imagem impressa em sua vestimenta, seja no achamento de uma imagem esculpida em madeira ou barro.

A brasileira foi em terracota, ou em outras palavras, a argila cozida no forno. Conta a lenda que, em 1717, dois humildes pescadores pescavam no rio Paraíba do Sul, no estado de São Paulo, quando, depois de muitas tentativas infrutíferas, trouxeram na rede uma imagem de Nossa Senhora. Mas qual não foi a surpresa da dupla ao perceberem que ela estava sem cabeça. E não é que ao jogar a rede novamente lá veio a cabeça? Assim são os mitos católicos, pueris e inquestionáveis.

A história que se segue é a de sempre: milagres, curas, promessas, gente de joelhos, construção de capelas, igrejas e basílicas. A Basílica de Nossa Senhora Aparecida, localizada na hoje cidade paulista de Aparecida do Norte, é considerada o maior santuário mariano do mundo.

Mas, talvez para surpresa do leitor que acompanha o fato apenas pelo noticiário tradicional, não é lá que acontece a maior devoção à Virgem Maria, e sim no Pará. E isso, se você ainda não sabe, vai passar a saber a partir de agora, pois se depender da grande imprensa, essa que forma as opiniões, vamos continuar achando que o Círio é apenas uma das maiores celebrações católicas do Brasil.

A Santa que passeia

Nossa Senhora de Nazaré, diferentemente da padroeira do Brasil, carrega em seus braços o menino Jesus, ao qual, em sua versão original, dá seu peito em amamentação. Mas será difícil encontrar essa imagem visto que a moral católica reformatou a iconografia e hoje vemos apenas o menino Jesus em seu colo, ambos olhando para frente.

Mas igualmente à Aparecida, também foi achada por um caboclo entre o lodo e as pedras de um igarapé. O caboclo levou a imagem para casa e ergueu um pequeno altar para a santa. Mas qual não foi a surpresa quando no dia seguinte viu que a estátua não estava mais lá. Maior surpresa ainda foi o caboclo descobrir que a imagem retornara para o exato local onde havia sido achada. E isso ainda aconteceria algumas vezes, visto que o caboclo insistia em trazê-la de volta consigo.

Finalmente entendendo o recado, o caboclo decidiu então construir uma capelinha para a santa no local onde a havia encontrado. A notícia correu como rastilho de pólvora e logo as romarias e devoções se multiplicavam. O Estado, como sempre, logo quis institucionalizar a Santa. Veio então um governador e decidiu que a imagem teria a sua capela no Palácio da Cidade. E lá foi a santa novamente.

Não contava o mandatário que, teimosa, voltaria ao seu local de origem mais uma vez. Convencidos de que a imagem de Nossa Senhora de Nazaré queria ficar onde estava, na beira do igarapé, decidiram então erguer ali uma capela melhorzinha, depois uma igreja, e depois uma basílica, a hoje imponente Basílica de Nossa Senhora de Nazaré com suas cinco naves, a principal com 62 metros de comprimento, duas torres de 42 metros de altura (14 andares), 32 colunas em granito maciço, 54 vitrais e por aí vai. Foi elevada à condição de santuário em 2006.

E foi desse vai-e-vem da imagem que surgiu a procissão do Círio de Nazaré.

Respirando Nazaré

Estando em Belém do Pará no mês de outubro, é impossível não se envolver com o Círio, nem que seja para trocar a passagem e voltar mais cedo. Não foi o caso do colunista que, mesmo se tivesse a opção, não teria saído da cidade. Tudo indicava um momento imperdível.

Na verdade, se formos pesquisar com cuidado, veremos que o Círio de Nazaré apenas tem seu grand finale em outubro, o fato é que a programação corre durante todo o ano. Podemos dizer que Belém vive em um constante Estado de Círio.

A celebração basicamente revive a lenda da imagem encontrada no igarapé e seus translados, sempre retornando ao ponto de partida. A apoteose acontece no segundo domingo de outubro quando, após ser transferida na noite anterior para a Igreja da Sé, é conduzida de volta à Basílica por uma multidão de milhões. E nesse caso, não estamos usando uma figura de linguagem.

Neste mês, tudo em Belém passa a funcionar para o Círio. A cidade se prepara, o asfalto do trajeto é recapeado, bueiros limpos, árvores podadas. Hotéis e restaurantes se abastecem, os ambulantes aumentam seus estoques de fitinhas, paninhos, imagens, cordões e terços. As fachadas são decoradas com faixas de agradecimento, apoio e saudação à santa. Até as campanhas publicitárias se aproveitam do momento. Aliás, o próprio Círio tem patrocinador. Isso mesmo! O Círio de Nazaré é patrocinado por um plano de saúde. Como diria o colega colunista Ancelmo Gois, parece ironia, e é!


O Círio é precedido por outros eventos. Começa com o translado para o município vizinho de Ananindeua, quando a imagem sai da basílica e segue acompanhada por carros da polícia, ambulâncias, bombeiros, particulares, motos, bicicletas e pedestres, é a chamada Romaria Rodoviária. Daí segue, já de madrugada, para o porto de Icoaraci, um distrito afastado de Belém onde embarca, no raiar do sol, em um navio da marinha para a Romaria Fluvial, ou o Círio das Águas.

A procissão marítima é hoje acompanhada, segundo dados da capitania, por mais de 1000 embarcações. O colunista pede paciência com os números e adjetivos efusivos nesta coluna. Tudo no Círio é factualmente exagerado.

Assim que retorna ao porto de Belém, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, sempre protegida por uma luxuosa redoma de cristal com moldura dourada, chamada de Berlinda, é recolocada em um veículo e levada de volta à Basílica, de onde sairá no início da noite para a transladação. Este trajeto é acompanhado por milhares de motos que deslizam em alta velocidade e com as buzinas a todo vapor: é a Moto-romaria.


Mas é na Transladação que a coisa começa a ficar realmente séria. As ruas do centro são fechadas. O clima na cidade muda, lembrando em muito a sexta-feira de carnaval quando a atmosfera parece desacelerar antes da explosão carnavalesca. Aquela calmaria antes do temporal com papéis voando soltos na avenida principal.

Pessoas, sozinhas ou em grupos, caminham na mesma direção. O branco é a cor que predomina, mas não a única. O colunista, já desfeito de todos os compromissos de trabalho, juntou um bloco de notas, uma câmera fotográfica e uma garrafa d’água e seguiu no fluxo. O que veria em seguida emocionaria o mais fiel dos ateus.

A corda é a corda!

Ao se aproximar da basílica, o espaço para a caminhada vai diminuindo. Apesar da multidão, o clima é tranqüilo e sem incidentes. Salta aos olhos, logo de cara, a idade daqueles que se espremem na corda, como também suas feições e, principalmente, o motivo que os trazem ali.

A corda é o símbolo máximo do Círio. Na verdade, a corda é apenas isso, um símbolo, visto que de fato não puxa a berlinda. Se estivesse conectada ao andor, tombaria a imagem visto a forma furiosa como é agarrada. A corda é feita de sisal e tem quase 10 centímetros de diâmetro com 400 metros de comprimento.

Meu espanto foi ver aquela garotada toda ali em um sacrifício fora do comum. Estamos acostumados a ver em procissões católicas rostos mais humildes e marcados pelo tempo, as famosas carolas. Mas ali na corda da transladação o que mais se via eram jovens recém saídos da adolescência, todos nitidamente filhos das classes mais abastadas belenenses. E eu comecei a achar aquilo muito curioso.

Veja bem, o Círio não é um evento social. Tampouco se resume a pagar uma promessa levando uma imagem ao altar, um ex-voto qualquer. Estar na corda significa encarar, descalço, quase 4 quilômetros de caminhada sob pressão máxima no peito e nas costas, falta de ar, pés em carne viva, temperatura estonteante, e ainda assim ter fôlego para gritar os vivas à Virgem Maria, tantas vezes entoados durante o translado. Quem está ali é chamado de promesseiros, e só é promesseiro aquele que caminha descalço.

Mas qual não foi a minha surpresa ao descobrir o motivo que trazia a maioria daquelas almas jovens àquele evento de tamanha seriedade: passar no vestibular!

Sim nobre leitor e leitora, aquela multidão de rostos imberbes estava ali venerando Nossa Senhora de Nazaré simplesmente para passar na grande prova estudantil.

Santa paciência! Com todo respeito, isso lá é coisa que se peça a um símbolo com a significância de uma Nossa Senhora de Nazaré? E olha que quem está escrevendo isso é um ateu, sim um ateu comovido, mas um ateu.

Pedidos de milagres, e sua posterior penitência como pagamento, estão normalmente ligados a casos graves de saúde, problemas sérios com as finanças ou mesmo pedidos mais humanísticos como a paz no mundo. Mas entrar na corda de Nossa Senhora de Nazaré simplesmente para passar no vestibular, para mim já é uma falta de respeito com a liturgia.

Com diria Hugo Carvana: Vai estudar, vagabundo!!

A curiosidade é que a grande maioria estava ali pagando a promessa em antecipação. Veja só!...

Mas eu vim até aqui para falar da corda. A história é curiosa,durante a procissão de 1855, quando a berlinda ficou atolada por conta de uma grande chuva, a diretoria da festa teve a idéia de arranjar uma grande corda, emprestada às pressas de um comerciante, para que os fiéis puxassem a berlinda. A partir daí, os organizadores do Círio começaram a se prevenir, levando sempre uma corda durante a romaria. Mas foi só no ano de 1885 que a corda foi oficializada no Círio, substituindo definitivamente os animais que puxavam a berlinda. Com o passar do tempo, a simples corda que serviria de instrumento para conduzir o andor, se transformou em símbolo para os pagadores de promessa”, palavras da página oficial do Círio na internet e que eu não preciso reescrever.

Com seu comprimento limitado e o número de devotos crescendo a cada ano, cada vez sobra menos espaço para os promesseiros, na verdade já não há espaço há muito tempo, e mesmo assim o número de romeiros cresce. E o fato é que parece que, quanto menos espaço e mais sofrimento, mais os participantes ficam satisfeitos no pagamento de suas promessas. Não esqueçamos do ideário católico onde sofrimento é o pagamento para a redenção.

E o sofrimento começa bem antes de iniciar-se a procissão propriamente dita. Para garantir um lugar é preciso chegar cedo e marcar com convicção o seu ponto na corda, que fica esticada em linha reta no asfalto. Mas isso não era assim, antes a corda tinha o formato de U, mas com o crescimento dos participantes a cada ano, chegando aos estonteantes 2 milhões da atualidade, o formato anterior tinha se tornado inviável, fazendo com que a procissão durasse quase nove horas, como ocorreu em 2004. No ano seguinte lançaram a corda linear que baixou a duração para 5 horas(!!!).

A corda como símbolo cresceu tanto que hoje ela é a expressão maior do Círio, quase que seu objetivo, sua razão de ser. A Corda, que merece letra maiúscula a partir de agora, ganhou vida própria, ganhou corpo. É ela quem dita o ritmo da procissão, é ela quem une todos os participantes do Círio, todos os corações, literalmente colados um a um. E não se vê a Corda, sabe-se que ela está lá, mas praticamente não a vemos, inundada de mãos.

A senha de que o movimento vai começar é o final da missa, transmitida por um sistema de caixas de som presas aos postes ao longo de todo o trajeto de 3,5 km.

Apesar de não acreditar, o autor da coluna sentiu a força da fé daqueles que comungam com Nossa Senhora de Nazaré. Uma fé tão grande, tão concentrada, que se materializa em uma energia que se irradia em todas as direções. Essa é a energia que arrepia quem está perto, que faz arrancar lágrimas, palmas, gritos e suspiros.

A Corda se movimenta em força bruta, fazendo o que quer com quem está atrelado a ela. Serpenteia no asfalto, joga para todos os lados, expulsa os que não estão preparados, faz desmaiar os mais sensíveis.

E não são poucos os desmaios. Uma vez iniciada a procissão não há mais qualquer possibilidade de controle por nenhuma autoridade. Quando a Corda se movimenta, não há mais como pará-la. Um batalhão de ajudantes segue junto para tentar minimizar os danos. Ao longo de todo o trajeto é possível ver macas enroladas apontando para cima. São como faróis a identificar onde estão os socorristas, igualmente jovens que se voluntariam para salvar aqueles que desfalecem. E são muitos!

Há também quem traga um amigo, que fica fora da Corda, ao lado de quem está ajudando, servindo-o com água e refrescando com um abanador.

Vê-se também um ou outro organizador com megafone na mão, tentando, digo tentando, desesperadamente, dar ritmo à procissão. A pressão na Corda é incalculável.

O epicentro é a santa. Ela vem cercada por um batalhão de homens com seus braços entrelaçados. O exército é chamado para ajudar visto que a força local fica pequena para um evento desta magnitude. No passar da santa, quem está na calçada esperando ergue as mãos para receber a benção de Nazaré. Emoção em estado puro.


Mas não fique de bobeira. O movimento da santa é incontrolável, ela não pára e não tem como ser parada. Não respeita idosos, crianças, deficientes ou necessidade especiais. Se vacilar, ela vai te arrastar e jogar no chão. Para se ter a idéia da pressão, o colunista, que é abusado e enxerido, resolveu ir até próximo do andor para ver a berlinda de perto. Mas quando viu, estava tragado pela multidão em um empurra-empurra visceral. Veja, não há violência, apenas intensidade absurda.

Ao se desvencilhar para um local mais arejado, quando fui buscar por alguma coisa na mochila, descobri que a câmera de vídeo, guardada dentro de uma bolsa dentro da mochila, havia rachado com a pressão. Daí você tem a idéia.

E isso tudo estamos falando apenas da transladação. O Círio propriamente dito acontece no domingo quando a procissão parte de volta à Basílica às seis da manhã, chegando ao seu destino horas depois.

Encarar o Círio de Nazaré de domingo não é para qualquer um, além de todos os desafios físicos, tem-se ainda o sol escaldante da linha do equador.

O Círio é hoje uma instituição. A Virgem de Nazaré foi proclamada Padroeira do Pará em 1971 através de uma Lei Estadual. É também chamada de Rainha da Amazônia. O Círio foi registrado, em setembro de 2004, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como patrimônio cultural de natureza imaterial.

E tem mais. No Círio o profano também tem seu lugar. E não poderia ser diferente visto que culturalmente os brasileiros lidam bem com essa mistura, o que, aliás, é a marca mais importante disso que chamamos de brasilidade. Em meio a todas as celebrações religiosas, festas profanas acontecem simultaneamente, inclusive uma festa GLS chamada Chiquita, além do Arraial da Pavulagem, uma festa-show de ritmos regionais como o Carimbó, realizada logo depois do fim da moto-romaria, ainda no sábado.

E tem ainda a culinária, outro forte da região, a deliciosa comida nortista, de peixes e sabores fartos. É tradição comer em família, no domingo ao fim da procissão do Círio, um Pato no Tucupi. Se você é pato, não vai querer estar em Belém durante o mês de outubro...

Segundo dados do Dieese (PA), o Círio movimenta cerca de R$ 700 milhões na economia paraense. Quase 80 % dos paraenses têm nele sua maior celebração, maior ainda que o Natal. O número de empregos informais aumenta em 30% durante o período da festa.

Mesmo assim o Círio parece menosprezado não só pela mídia como também pelas autoridades. Não houve a presença de nenhum governador e nem mesmo do presidente da República. Houve sim, a presença da candidata Dilma Roussef, mas isso sabemos o motivo. E mais, o Círio parece até mesmo abandonado pela própria igreja católica, que não manda nenhum representante de peso, quiçá o Papa! Curioso.

Assim, o Círio segue sendo apenas uma das maiores manifestações católicas do Brasil. A peregrinação à Aparecida do Norte junta no máximo 400 mil pessoas no seu 12 de outubro. Aliás, outubro é o mês preferido de Nossa Senhora. Outro santuário muito visitado é o de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, também um local de aparição da Santa e da famosa entrega dos seus três segredos a um grupo de crianças. A data principal de suas comemorações coincide com as datas no Brasil, lá a data forte acontece no dia 13 de outubro com a Missa Oficial Internacional, que reuniu este ano 140 mil peregrinos.

Nada chega próximo aos 2 milhões de participantes do Círio de Nazaré.

O Círio é o maior evento católico do mundo. Orgulhe-se, despreze ou seja indiferente, mas fique sabendo que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.


KF



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quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A disputa por Honduras

Em abril deste ano, durante a reunião da 5ª Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, presenteou o norte-americano Barack Obama com um exemplar do livro As Veias Abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. No frontispício escreveu: “Com afeto”.

Chávez, um mestre das jogadas ensaiadas, estava na verdade dando um tapa com luva de pelica no mandatário dos EUA, já que o livro é considerado uma obra-prima na análise da turbulenta história dos países latinos em sua busca pela real independência. O livro, fundamentado em uma ampla pesquisa histórica, leitura obrigatória para quem quer entender a América Latina de hoje, expõe a permanente intervenção dos EUA que, a qualquer custo (sempre caro e com vidas), tentava impedir que uma “Nova Cuba” acontecesse no continente americano.

As ferramentas utilizadas sempre foram as mesmas: grana e garra. No caso, as garras afiadas de seus Marines. E a grana sempre vinha camuflada em eufemismos como Cooperação Econômica, Intercâmbio Cultural, e seus etcs Os EUA aproveitavam para instalar suas bases militares internacionais, como a que tem em Honduras (Palmerola Air Base).


Honduras penas

Até semana passada, Honduras era um nome praticamente inexistente no noticiário brasileiro (e quiçá mundial). Uma coisa assim como o Suriname ou a Guiana. Honduras está localizada em uma América Central muito mais distante do que deveria ser. Sabemos mais do Irã ou da China, e isso é um dado importante pois mostra a falta de uma política de relacionamento externo do Brasil com os demais países latino-americanos.

Não há comércio com Honduras, não há turismo com Honduras, não há intercâmbio cultural com Honduras. Não se sabe de um show de artista brasileiro. Não se sabe de cinemas passando filmes brasileiros, não se sabe coisa alguma sobre Honduras. Até agora.

E o fato tem algumas razões de ser. A América Central está de fato desconectada da América do Sul, não só pelas vias econômica, cultural, e turística, mas principalmente geográfica. Sim, territorialmente estamos ligados, mas o leitor ficará surpreso ao saber que não existe uma ligação rodoviária entre os dois continentes. Colômbia e Panamá não têm estrada alguma que os conectem. Curioso, não?

Mas vamos aos fatos, quem é esse homem de bigode e chapéu que agora se abriga na representação brasileira em Tegucigalpa?

Depois de muitas ditaduras, todas financiadas e controladas pelos EUA (a não ser Cuba em sua fase posterior a invasão da baía dos Porcos), a América Latina vive hoje uma boa jornada democrática. Manuel Zelaya, assim como Lula, Chávez e Uribe, foi eleito pelo voto democrático. No entanto, diferentemente dos outros três, Zelaya não tem o direito de se candidatar a uma reeleição.

Nada mais pertinente do que o presidente de Honduras também cogitar uma emenda na constituição de seu país, que desse o direito a disputar um novo mandato. Vejamos bem, Zelaya não estava impondo seu nome, não estava dando um auto-golpe em sua carta magna, estava apenas propondo um referendo para que a população hondurenha, um país com cerca de 7,5 milhões de habitantes, decidisse o seu ciclo presidencial.

Sim, estou ciente de toda a discussão sobre o pilar da democracia, que é isso que chamam de Alternância do Poder. Segundo os estudiosos, a democracia estará salvaguardada se não elegermos, no caso do Brasil, mais que duas vezes a mesma pessoa. Não sei quem fez a conta, mas sei que a decisão parece ser a de chamar o eleitor de burro.

Sim, sabemos que um mandatário no posto pode (e o fará, você não faria?) usar da máquina administrativa-publicitária para se manter no cargo ad eternum. Mas admitir isso é o mesmo que dizer que o povo é uma massa manobrável. O que talvez, lamentavelmente, seja mesmo verdade. Mas não pode ser tão presumível assim.

E tem outra, nada garante que o titular da cadeira seja reeleito. É só olharmos as eleições no Brasil, são vários os casos de candidatos que simplesmente não se reelegeram. Pensando assim, também seria cabível acreditar que o titular elegeria o seu indicado, como fazemos agora com Dilma, mas nada garante que vencerá, aliás, pelo que vimos até agora, ainda tem poucas chances.



A reeleição é boa para a Democracia. No entanto, apesar da argumentação dos parágrafos acima, ainda não tenho uma opinião formada sobre a quantidade de vezes que um indivíduo possa se candidatar para o mesmo cargo que ocupa. É uma matemática que não quero que façam por mim. Talvez fosse interessante experimentar para testar (opa lá, não estou defendendo o terceiro mandato do Lula!!!).

Mas Zelaya queria apenas mais um mandato. E também não podemos entrar em uma paranóia chavista de que agora todo mundo vai querer se eternizar no poder. Muita calma nessa hora!

Eu sei que é difícil defender um homem que se apresenta com um ridículo chapéu de vaqueiro e um anacrônico bigodão, assim como tem ficado cada vez mais difícil defender Hugo Chávez, que nos empurra para longe cada vez que cerceia a liberdade de imprensa em seu país, entre outros impropérios.

Inspirado nos colegas sul-americanos, Zelaya propôs um plebiscito sobre a reeleição. Plebiscitos são instrumentos legítimos dentro da democracia. Nós brasileiros já optamos entre Presidencialismo, Parlamentarismo, República e Monarquia, tendo assim o direito soberano de escolha. É claro que o leitor pode dizer que o eleitor pode ser manipulado da mesma forma, mas não tem jeito a não ser insistir na democracia.

Plebiscitos já aconteceram inclusive na Venezuela, com derrota de Chávez, que pretendia aprovar a reeleição ilimitada em sua constituição. Curiosamente, a derrota foi “festejada” pela imprensa mundial. Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, acaba de receber o sinal verde de seu Congresso para que realize um plebiscito para garantir-lhe o direito de disputar um terceiro mandato. Curiosamente houve pouco estardalhaço na imprensa mundial. Ao povo hondurenho foi negado sequer o direito de um plebiscito. De dizer: esse cara está indo bem, vamos dar mais quatro anos para ele.

Mas Zelaya é um cara teimoso e insistiu na jogada. Só que não esperava que seu comandante militar se negasse a instalar as urnas para o plebiscito. No dia seguinte, o destituiu do cargo. Daí foi ladeira abaixo.

O presidente de Honduras não deve ser muito querido por seus pares na vida política daquele país. Foi só abrir um flanco para que a Corte Suprema, o Congresso Nacional e os militares conduzissem um julgamento sumário, sem direito de defesa, condenando-o ao exílio involuntário.

Assim sendo, na madrugada do último 28 de julho, militares encapuzados invadiram a residência oficial e o seqüestraram. O ainda presidente foi colocado à força em um avião, ainda de pijama, e levado para a Costa Rica. Zelaya afirma que o avião fez uma escala em uma base norte-americana em território hondurenho, o que colocaria em suspeita a participação dos EUA em mais este golpe de estado latino-americano. O colunista, particularmente, tem poucas dúvidas sobre a participação de Washington no episódio. Conhecendo a influência dos EUA na região, é muito pouco provável que os golpistas fariam qualquer movimento sem antes consultar o governo Obama.










Não deu no jornal

Mas o que realmente me chama a atenção em todo este caso é a perda de foco nas reportagens feitas pelos grandes jornais. Ao invés de se reforçar as críticas ao governo golpista, intensificando a pressão pela volta do presidente eleito, passou-se a discutir sobre a legitimidade da participação brasileira no episódio e se o gesto é ou não uma intromissão em assuntos internos daquele país.

Não podemos cair tão facilmente neste argumento. Se fosse assim, o mundo não teria nada o que fazer com as ditaduras mundo afora, tolerando-as de forma obediente e passiva. Foi com este tipo de postura que figuras como Adolf Hitler cresceram em seus países. O respeito à soberania é inabalável, mas Honduras, ao ter um governo golpista controlando o país, fechando jornais, decretando estado de sítio, atirando em pessoas, prendendo às centenas, cortando as liberdades individuais, perde imediatamente qualquer legalidade que poderia ter.

Ao chamar o golpista Roberto Micheletti de presidente, a imprensa ingenuamente (ou não) o legitima no cargo. Ao classificar, por exemplo, as ações do MST de invasões e não de ocupações, a imprensa demonstra que escolhe nos adjetivos o lado da história em que está. Portanto, o mesmo deve se aplicar ao imbróglio atual, a não ser que estejam apoiando o golpe.

A opinião pública deve ter muito cuidado com o que lê, pois o arranjo das palavras não só confunde com induz. Vejamos uma pesquisinha conduzida pelo jornali O Globo em seu formato on line. A pergunta era: O Brasil deve entregar Zelaya ao governo interino de Honduras? Mas são nas respostas oferecidas que constatamos a manipulação. Não se tem um simples sim ou não, as repostas oferecidas são: “Não, deve continuar firme na defesa do presidente deposto” e “Sim, deve deixar que Honduras decida o destino do líder deposto”. Os jornalista do O Globo só podem estar brincando. Primeiro chamam o governo golpista de governo interino, depois induzem o leitor a privilegiar uma suposta soberania de Honduras que na verdade é altamente questionável neste momento; O resultado? É claro que deu a opção Sim, com 66% dos votos. Palhaçada.

Sim, Zelaya forçou a barra ao tentar impor o seu plebiscito fora de hora (afinal, teve a idéia em ano eleitoral), mas a punição imposta parece que já vinha sendo gestada há tempos, só aguardando uma oportunidade de aflorar.

Alguns outros fatos devem ser levados em consideração. Manuel Zelaya é hoje um aliado oficial de Hugo Chávez, visto que em 2008 aderiu a Aliança Bolivariana para as Américas, movimento liderado pelo presidente da Venezuela. Zelaya também vinha “desagradando” a elite hondurenha, justamente aquela que o tinha apoiado em sua eleição. Os desagrados teriam sido o aumento de 60% no salário mínimo, em um país onde 70% da população está na linha de pobreza, e um aceno de uma possível estatização de alguns setores da economia. Os ricos ficaram em polvorosa.

Não sabemos se Zelaya seria reeleito (e provavelmente não saberemos mais). Se foi tão ruim assim como governante, que deixassem as urnas provarem. Se havia suspeitas de uma possível fraude, que fosse convocada uma missão de observadores da OEA. Nunca um golpe.

Aliás, falando em Organização dos Estados Americanos, ONUs e afins, a atuação pífia já não é novidade. De que servem estas organizações? Desde o episódio das Armas de Destruição em Massa no Iraque, quando os EUA desrespeitaram a orientação do Conselho de Segurança para que não fizessem uma intervenção militar, que esta instituição perdeu a sua razão de ser. Não entendo o porquê de Lula perseguir tanto o objetivo de ocupar uma vaga em um conselho enfraquecido. Por enquanto, a OEA tem feito o que sempre faz, redige em uma folha de papel uma condenação, um protesto qualquer, e fica aguardando para ver se faz efeito. Santa pantomima!

Ao invés de discutirmos a participação do Brasil no caso, devíamos estar condenando em altíssimo tom o golpe de estado em Honduras. Não estamos falando de um país distante onde os regimes totalitários são costume, estamos falando de um país democrático localizado logo ali, que há muito devíamos ter nos aproximado.

O Brasil deve exercer este papel, mas não devemos confundi-lo com aquele mantido pelos EUA ao longo de nossa história recente. Temos sempre a predisposição a achar que um país que interfere na vida de outro será necessariamente pela via do imperialismo e subjugação. O Brasil, como é de seu costume, do costume de sua cultura e do seu povo, pode apresentar um novo modelo de política externa, um novo modelo de postura democrática.

Lamentável também que políticos de oposição aproveitem do momento para alavancarem as críticas ao atual governo. Pobre oposição...

No mais, quem sabe um dia conseguiremos, enfim, vencer o nosso complexo de vira-latas!

Apesar de não merecer, Viva Zelaya!! (mesmo com sua figura patética)



KF



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