quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As tarefas de cada um


Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Não há quem não conheça as três tarefas básicas para, o que dizem, ser uma vida completa.

No caso do colunista, árvores já foram algumas, o livro foi publicado faz nove anos, e a filha nasceu há cerca de um.

Agora, depois de cumpridas todas, uma coisa me parece certa: escrever um livro é com certeza a mais trabalhosa.

Isso sem falar que escrever não significa que necessariamente verás a obra publicada. Em um mercado de poucos leitores como o brasileiro, ter um livro na estante de uma livraria nem sempre depende-se apenas do talento, muitas vezes é preciso forçar a porta do mercado.

Mas antes de pensar na fila de autógrafos, é preciso escrever, escrever, escrever, reescrever, cortar palavras, colocar outras no lugar, e tornar a escrever.

Viajar para escrever

A história de como escrevi o livro “Avenida das Américas – uma viagem de bicicleta pela América Latina” leva quase uma década entre idas e vindas a uma máquina Olivetti, nesta labuta pelo parágrafo perfeito. 

Mas no caso de um relato de viagem, havia ainda um outro elemento desafiador: como reviver uma história tão intensa - e colocá-la no papel de forma fiel -  no meio dos afazeres do dia-a-dia?

Primeira página do original
Depois de inúmeras tentativas em casa, veio a decisão de que para escrever o livro eu teria que me afastar do cotidiano e mergulhar novamente na viagem.

Ao longo dos 10 anos de produção do texto, foram três viagens para locais diferentes. Itapecerica da Serra, na grande São Paulo, onde um tio-avô morava em uma chácara; Sana, distrito de Casemiro de Abreu, no norte fluminense, onde dividia com uns amigos uma casinha no meio do mato; e finalmente para a cidade serrana de Petrópolis, onde aluguei uma casa de temporada para, enfim, terminar o livro.

Com o Avenida das Américas pronto, passei a bater nas portas das editoras, principalmente aquelas que já tinham publicações dentro do mesmo segmento.

Todas fechadas.

Os anos passavam e nada de encontrar uma brecha. Com a certeza da qualidade do texto e, acima de tudo, da história, tomei a decisão de publicá-lo por conta própria. Ou melhor, através de uma parceria com uma pequena editora carioca. Eu pagaria pelos custos de diagramação, arte e impressão, e eles cuidariam da distribuição. Nisso foi-se o meu Palio 1998.

O livro foi lançado numa bela manhã de dezembro de 2003, no casarão do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

O livro é do leitor
Desde a sua publicação, o livro proporcionou ao colunista uma série de alegrias, que naturalmente não vieram do retorno financeiro, mas sim do inesperado resultado que vinha da experiência de cada leitor.

O livro conta não só a história da viagem, mas também um pouco da história da América Latina,  sempre relacionada com o que eu havia vivido durante os seis meses cruzando o continente.

Com isso, o livro acabou gerando o interesse de escolas. A primeira a adotar foi a escola George March, da cidade de Teresópolis, no estado do Rio. Incluído dentro do que os professores chamam de leitura transversal, o livro foi um grande sucesso, gerando uma série de trabalhos dentro e fora de sala.

Vem daí uma das muitas histórias da relação dos leitores com o livro. Essa foi assim: a diretora recebeu a ligação de um pai querendo saber que livro era esse que a escola havia indicado. Apreensiva, ela logo quis saber o motivo. O pai relatou que a filha tinha deixado de ir a uma festinha com as amigas para ficar lendo o livro, o que ele achou realmente incrível. Alívio geral para a diretora, e satisfação enorme para o autor.

Depois disso veio o Instituto Metodista Bennett, tradicional instituição de ensino carioca. A escola não tinha adotado o livro, mas algumas professoras decidiram organizar uma palestra.

O auditório de 200 lugares lotado de pré-adolescentes frenéticos parecia prever o pior. Procurando evitar um possível vexame, a organizadora do evento me chamou em um canto e já antecipou as desculpas por qualquer algazarra fora de controle. Recomendou que eu falasse em torno de 20 minutos e abrisse logo para perguntas. Em seguida, todos seriam liberados para o recreio.

O que aconteceu foi que o autor falou durante duas horas sem ser interrompido. No final as perguntas não paravam, levando as professoras a limitar a participação e organizar as perguntas em blocos.

Sem perceber, todos perderam o recreio.

Durante muito tempo a caixa postal do colunista amanheceu com mensagens de carinho, nas mais diversas formas. Como uma que disse que nunca tinha lido um livro tão rápido, outro que comprou o livro, saiu lendo, continuou no carro, no restaurante, e voltou para casa lendo. Ou ainda uma que escreveu assim: “Oi Kadeh, finalmente acabei de percorrer o Avenida das Américas junto com você...Ufa! Infelizmente não perdi uma só caloria...”.   Ou ainda um emocionante que recebi de um grande amigo dizendo assim: “Quando acabei de ler eram umas quatro da manhã e não conseguia ficar quieto. Era preciso o movimento. Peguei minha bicicleta e fui dar um rolê. Só para arejar a cabeça. Pedalando fiquei com os olhos cheios d’água novamente. Podia até ser um cisco no olho, mas era felicidade mesmo.”.



20 anos de estrada
Recentemente o colunista percebeu que uma data fechada se aproximava. No dia 19 de setembro de 2012 completariam 20 anos da viagem. Pensei se era preciso uma comemoração ou um grande evento.

Os dias passavam e nenhuma idéia aparecia para marcar a data.

No dia 15 de setembro chegou uma mensagem pela rede social. Uma amiga pedia a autorização para passar o meu correio eletrônico para uma pessoa que conhecera recentemente e que, segundo ela, havia mudado a vida por causa do meu livro.

Exageros a parte, naturalmente sinalizei positivamente.

Dias depois recebo a seguinte missiva:

Boa noite Kadeh,

No ano passado fiz uma viagem de bike pela América do Sul. E minha primeira idéia de viajar veio do teu livro, Avenida das Américas.

Quando tinha uns 13-14 anos vi seu livro numa livraria, procurando histórias boas na seção de viagens.

Achei aquela história de ter viajado de bike incrível, nunca tinha ouvido falar disso!

Aí comprei o livro e devorei em uns poucos dias, fiquei vidrado naquela idéia, já fiquei pensando que era assim que eu tinha que viajar...

Quando tinha uns 15-16 anos comprei um quadro de cromo já pra montar a bike pra cair na estrada, mas não tinha dinheiro pra mais nada...

O quadro ficou uns 4 anos encostado atrás da escrivaninha até eu começar a trabalhar e juntar uma grana pro resto das peças.

Enfim, essa história é longa, mas começou com seu livro, e sempre fiquei curioso pra te conhecer e agradecer pelo livro.

Brigadão,

Leonardo de Carvalho Soares

Leonardo, sem saber, deu o presente que a data merecia.

Epílogo
A autoria ou a origem do provérbio que abre este artigo perdeu-se no tempo. Soa como chinês ou árabe, culturas a quem devemos muito do que somos hoje. Interpretações mil podem ser feitas, mas parece mais que fala sobre o legado que cada um deixa ao passar por esta vida.

O livro Avenida das Américas teve uma tiragem de 2 mil exemplares. É hoje considerado esgotado. O autor mantém uma reserva técnica de 15 exemplares. E mais nada.

Há anos venho tentando republicá-lo, ciente de que a trajetória deste livro ainda não se encerrou.

Mensagens como a de Leonardo ajudam a manter a confiança.


Carpe diem



KF


A história de Leonardo pode ser conferida no blog que ele montou, o caminhosdebicicleta.blogspot.com.

O do colunista em:  cicloamericas.wordpress.com.



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